terça-feira, maio 23, 2006

O que alguns não entendem sobre a crise do gás

Nessas últimas semanas, o Brasil tem vivido momentos inusitados nas suas relações internacionais com seus vizinhos. Com um particularmente, originado pelas ações pouco ortodoxas de seu presidente: estou falando, claro, da Bolívia e da nacionalização do gás natural desse país realizada pelo presidente Evo Morales, acontecimento que ocupou as manchetes dos jornais brasileiros mais do que os de qualquer outra nação, devido à influência que tal ato nos terá. Isso se deve ao fato do gás boliviano abastecer todas as indústrias da região Sul do Brasil, além de 75% das da região Sudeste, abastecimento esse que poderá ser prejudicado com a intenção de aumento de preços do gás requerido no ato de nacionalização das reservas. Brasil e Bolívia têm uma relação muito estreita quando o assunto é gás natural. O abastecimento do mercado brasileiro ocorre através de um dispendioso sistema de infra-estrutura construído pela estatal brasileira Petrobrás. Suas refinarias na Bolívia, por sua vez, são responsáveis por cerca de 20% do PIB daquele país, fazendo mútua a dependência desses países. A nossa, no entanto, foi opcional, pois se enganam os que pensam que o Brasil está nas mãos da Bolívia. A compra do gás boliviano tem caráter muito mais político que econômico, evidenciado pelo anúncio feito semana passada da auto-suficiência em gás que nosso país terá até 2008. Dilma Roussef, atual Chefe da Casa Civil do governo brasileiro e ex-Ministra de Minas e Energia, esclareceu isso ontem ao afirmar no programa Roda Viva, da TV Cultura, que “o gás boliviano é substituível ao Brasil; o Brasil não é substituível à Bolívia”, haja vista que o Brasil é o maior importador do produto daquele país.

A excentricidade da, como é agora popularmente conhecida, crise do gás, ou crise da Bolívia, tem motivos, portanto, que ultrapassam o senso comum daqueles que analisam os fenômenos sociais simplesmente pelo que eles parecem ser. Talvez por isso, tem ficado escancarada a imaturidade como determinados setores da nossa sociedade se comportam diante de situações como tal. Devo admitir que me choquei com a forma através da qual parte da imprensa e alguns dos nossos chamados formadores de opinião, inclusive congressistas, “defenderam o interesse nacional” com suas penas e discursos, o que logicamente se refletiu noutros setores sociais, digamos, menos capazes de compreender a complexidade da questão. Até parece que a Bolívia não tem razões para fazer o que fez: 70% de sua população vive na pobreza, carecendo de infra-estrutura básica e vivendo num isolamento da conjuntura mundial que, até no Brasil, nos é cotidiano, como globalização, fluxo de capitais, negociações em organismos internacionais etc. É cômico ouvir algumas pessoas falar que o ato de Morales vai afastar os capitais da Bolívia. Pergunto: que capitais? Pelo jeito, alguns pensam que estamos tratando de um país emergente, inserido internacionalmente, brigando por investimentos com a China, com uma política de câmbio que favoreça as exportações, buscando a queda de seu risco-país e blá, blá, blá... Ora, a Bolívia é um país fora desse jogo, sem muito o que perder. É equivocado pensar que a nacionalização do gás lá terá as mesmas conseqüências que teria tal ato num país como o Brasil. As idéias pela “preservação de contratos” na Bolívia, para que não se perca sei lá eu o quê, formam parte do conjunto de ideologias em prol dos 30% da população rica, e não de toda a população. As elites bolivianas fazem uma coisa já bastante tradicional a esse grupo social: fazer com que seus interesses pareçam interesses de todos.

Que fique claro que não quero ser a simbologia do fogo amigo, defendendo o que não convém a nós, brasileiros. Mas como cientista econômico procuro fazer... ciência, e não pregação religiosa. Por exemplo, não gostei nada de ver a sede da Petrobrás cercada pelo exército boliviano, e sobre isso, como brasileiro, também quero explicações do companheiro Evo. A Petrobrás é uma empresa estatal, representando um governo eleito que sempre apoiou o novo governo boliviano. Tenho certeza que, se fosse proposta a renegociação dos preços do gás, o governo brasileiro aceitaria. Além disso, declarações feitas por Morales, como as de Viena sobre a compra do Acre, também não contribuíram em nada para que a decisão de nacionalizar o gás ocorresse de forma diplomaticamente mais suave, sem ser, necessariamente, menos rigorosa. A conseqüência foi a manutenção do chamado plano B por parte do Brasil - o de concretizar a auto-suficiência em gás - a fim de evitar outros problemas como esse, devido à falta de confiança nossa para com o Bolívia criada durante a crise. E isso, sim, pode afastar investimentos da Bolívia, até os da Petrobrás, a única empresa estatal das que lá investem e que, em tese, seria a única a ter seus investimentos garantidos no país, pelo fato de ter um Estado como credor. O erro de Morales, portanto, não foi econômico, mas político, ao querer transformar um ato legítimo e coerente numa manifestação de politicagem, coisa, cá entre nós, desnecessária.

Não sabemos exatamente como os acontecimentos se prosseguirão a partir daqui. A ida do nosso Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, à Bolívia, solicitando indenização à Petrobrás, põe em questionamento a até então amigável relação entre os dois países. Do nosso ponto de vista, admito que pouco podemos fazer: se se concretizarem as idéias bolivianas, e creio que, em algum nível, se concretizarão, o Brasil acabará admitindo o aumento dos preços do gás, talvez protestando em algum organismo internacional, nada mais. Retaliações mais fortes não devem acontecer, ao contrário do que pensam alguns. A importação do gás boliviano é politicamente estratégica para o Brasil, que tem um projeto de integração do continente sob sua liderança. E mesmo que a auto-suficiência nos seja possível em 2008, é bem provável que a importação do produto da Bolívia continue, pois esse é um assunto mais amplo que as capacidades de entendimento puramente técnicas e econômicas.