quarta-feira, dezembro 20, 2006

Salvos pelo Gongo

Ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o aumento de 91% dos salários de deputados e senadores. Era inconstitucional, seja lá o que isso signifique. A decisão ocorreu do julgamento de um mandato de segurança proposto pelos deputados Fernando Gabeira (PV), Carlos Sampaio (PSDB) e Raul Jungmann (PPS). Hoje, portanto, os congressistas devem decidir um novo percentual de reajuste a ser avaliado, devendo este ficar em 28, 4%, equivalente à inflação dos últimos quatro anos, desde quando não houve outros. Percentual ainda generoso, diga-se de passagem. O deputado Ciro Nogueira (PP), vice-presidente da Câmara, reclamou da decisão do STF, dizendo que o reajuste nas carreiras do Judiciário custará R$ 5 bilhões aos cofres públicos, mas que isso não repercute na sociedade. Ele está certo.

E na segunda-feira, enquanto o babaca do presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (PC do B), ao afirmar que não havia a intenção de recuar da decisão de reajustar os salários dos congressistas em 91%, ainda aproveitava para anunciar a renovação da frota oficial de automóveis da Casa, alguns solitários e honrosos protestos contra essa vergonha se iniciavam pelo país, todos dignos de saudações nessa terra de conservadores subnutridos, por serem os verdadeiros responsáveis pela decisão de caráter político do STF. Entre eles, estão:

A manifestação das esposas de militares, que estenderam uma faixa preta sobre a rampa do Congresso exigindo o mesmo aumento para os salários de seus maridos;

A passeata promovida pela Força Sindical e a coleta de assinaturas contra o reajuste, à qual todos nós podemos nos juntar pelo e-mail aumentoabusivo@cutsp.org.br, junto com uma manifestação no gramado do Congresso, com bonecos gigantes e uma alegoria que dizia “Produto brasileiro. Indicado: Parlamentares caras-de-pau”, realizadas pela CUT;

O protesto realizado por acadêmicos da Universidade de Brasília (UnB) que, com rostos pintados e narizes de palhaço, pediam o fechamento do Congresso;

A manifestação do aposentado William Carvalho, um grande brasileiro de 61 anos que se acorrentou a uma coluna do prédio do Senado;

E o ato de Rita de Cássia de Souza, outra grande brasileira, desempregada, 45 anos, que viajou de Ipiau, no interior da Bahia, para Salvador a fim de esfaquear o deputado Antônio Carlos Magalhães Neto (PFL), tendo como um dos argumentos a sua indignação com o aumento salarial dos parlamentares. Rita, é claro, agora está na cadeia (ela é mulher, negra e pobre). Onde estão os mensaleiros e sanguessugas? Recebendo 91% de aumento.


Num trecho do último texto que escrevi nesse blog, disse que o termo “(in)constitucional” era utilizado por autoridades, geralmente do Judiciário, para justificar decisões arbitrárias que se aplicam a uns, e não a outros. No Correio do Povo de ontem, Érico Correa, presidente do Sindicaixa, publicou uma coluna titulada “Cumprir a Constituição!”, que vai nesse sentido. Disse ele:
“O principal argumento dos representantes sindicais de juizes, promotores e outros bem-abençoados servidores públicos do Estado para seus reajustes salariais é o simples cumprimento do artigo 37, inciso X da Constituição federal. Esse item assegura a revisão anual dos vencimentos, sempre na mesma data e sem distinção de índices. É impressionante ver a força dos sindicalistas que representam essas coorporações, especialmente a dos juizes, que apelam para esse dispositivo constitucional para o atendimento de suas reivindicações.

Causam grande impacto ao conjunto dos servidores públicos – da educação, da segurança, da saúde, do Quadro Geral, entre outros – esses reajustes. Nós nos sentimos humilhados, ultrajados em nossa dignidade profissional. Não é possível aceitar que expressões como ‘sensibilização’ ou ‘reivindicação justa’, entre outras, sejam fartamente usadas por deputados para justificar esse absurdo aumento concedido somente para uma parcela dos servidores, justamente aquela parcela que ganha muito bem, obrigado.

Causa repulsa e espanto ao conjunto dos trabalhadores do serviço público quando informamos que as ações judiciais impetradas por nós, exigindo o cumprimento desse mesmo dispositivo constitucional, são derrotadas dentro do poder Judiciário, sob argumentação frágil e com fundamentação mais política do que jurídica. Ora, como podem aqueles que reivindicam esse artigo da lei para si negá-lo aos demais? (...)”

Falando nisso, o salário mínimo deve subir de R$ 350, 00 para R$ 375, 00, um aumento equivalente a 7, 14%. O Ministério da Fazenda quer que o aumento seja para R$ 367, 00, ou seja, de 4, 86%. A razão? Conter gastos públicos.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Socorro, MLST!

Foi chocante. Acordei sexta-feira de manhã, desci até as caixas de correio no térreo do prédio onde moro, com a cara ainda amassada pelo sono, peguei o jornal e lá estava: “Salário de senador e deputado sobe 91%.” Pisquei os olhos várias vezes: 91%!

O dia, de fato, não tinha começado bem. Li o jornal rapidamente, com a testa enrugada, e saí rapidamente de casa, naquele calor infernal que tem aterrorizado Porto Alegre nesses últimos dias. Fui para a faculdade, e até o fim do dia de ontem, até na televisão, nos programas mais sérios, o assunto era tratado, com direito a jornalistas mais exaltados. Se a coisa já andava ruim na política brasileira, esse acontecimento foi, como costumo dizer, o fim da picada.

Se você, leitor, não sabe do que estou falando, saiba que você é um idiota, e é por causa de pessoas assim que o país está nessa merda. De qualquer forma, para você, idiota, vou explicar a história. É mais ou menos assim: Na quinta-feira, os presidentes do Congresso Nacional – Aldo Rebelo (PC do B), da Câmara, e Renan Calheiros (PMDB), do Senado – junto com líderes partidários, fecharam um acordo para que seus próprios salários tivessem um aumento de 91%, passando de R$ 12 847,20 para R$ 24 500,00. Isso mesmo, prezado idiota: os nossos queridos congressistas, tão eficientes e honestos, aumentaram seus salários em 91%, para R$ 24 500, 00, na nossa cara! Eles deram uma explicação, é claro: o objetivo foi equiparar seus vencimentos aos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), outro bando de filhos da puta, coorporativistas, que, na semana retrasada, também aumentaram seus próprios salários. A proposta inicial que estava no Congresso era de reajustar os salários dos parlamentares em 28, 4%, o equivalente à inflação dos últimos quatro anos, a partir de quando não houve mais aumentos. A proposta, é óbvio, foi rejeitada. “Ora, reajustar salário conforme a inflação é para trabalhador otário!”
A proposta de igualar os vencimentos dos deputados e senadores aos dos ministros do STF já estava aprovada desde 2002, mas ainda não havia entrado em vigor devido ao medo da repercussão negativa que tal medida teria. Agora, no entanto, transcorridas as eleições, esse medo simplesmente passou. Eles conhecem bem aquela história de que “o povo não tem memória”. Eu também. Ainda assim, vou cumprir meu papel de cidadão e citar os nomes de todos os congressistas que votaram a favor do reajuste. São eles:
Aldo Rebelo (PC do B-SP)
Renan Calheiros (PMDB-AL)
Ciro Nogueira (PP-PI)
Jorge Alberto (PMDB-SE)
Luciano Castro (PL-RR)
José Múcio (PTB-PE)
Wilson Santiago (PMDB-PB)
Miro Teixeira (PDT-RJ)
Sandra Rosado (PSB-RN)
Coubert Martins (PPS-BA)
Bismarck Maia (PSDB-CE)
Rodrigo Maia (PFL-RJ)
José Carlos Aleluia (PFL-BA)
Sandro Mabel (PL-GO)
Givaldo Carimbão (PSB-AL)
Arlindo Chinaglia (PT-SP)
Inácio Arruda (PC do B-CE)
Carlos Willian (PTC-MG)
Mário Heringer (PDT-MG)
Inocêncio Oliveira (PL-PE)
Demóstenes Torres (PFL-GO)
Efraim Moraes (PFL-PB)
Tião Viana (PT-AC)
Ney Suassuna (PMDB-PB)
Benedito de Lira (PL-AL)
Ideli Salvatti (PT-SC)
Apenas três líderes votaram contra a proposta: na Câmara, o do PT, Henrique Fontana, que defendeu a reposição conforme a inflação; e o do PSOL, Chico Alencar, que votou contra qualquer tipo de reajuste; e no Senado, também do PSOL, Heloísa Helena, que, como seu colega na Câmara, votou contra qualquer tipo de aumento salarial dos congressistas.

Vale ressaltar que desde janeiro desse ano, o Congresso já consumiu R$ 4 598 bilhões do orçamento do Governo, mais do que a soma dos orçamentos de cinco ministérios (Cidades, Esporte, Turismo, Cultura e Comunicações), equivalente a R$ 3 789 bilhões, sendo a maior parte de suas despesas realizadas para pagar os salários. O reajuste de 91% aos parlamentares deverá, como de costume, ser repassado aos servidores do Congresso, o que já foi reinvidicado pelo sindicato da categoria. E, só para lembrar, o reajuste de 91% será usufruído também por congressistas acusados de corrupção no escândalo do mensalão, que renunciaram a seus mandatos na época e foram reeleitos para um próximo, a partir do próximo ano. Os canalhas são Roberto Jefferson (PTB), José Borba (PMDB) e Pedro Correa (PP).

Bem, mas para piorar a situação, o reajuste salarial dos nossos congressistas pode gerar um efeito cascata que amplia muito mais os males dessa medida. Isso porque as Assembléias Legislativas têm os salários de seus deputados estaduais indexados aos dos federais em até 75%, o que fará com que, graças ao aumento generoso dos últimos, os primeiros também recebam essa graça automaticamente. Assim, no RS, por exemplo, os 55 deputados estaduais deverão ter seus vencimentos aumentados de R$ 9 500, 00 para R$ 18 300, 00. Se isso ocorrer, sobem daí os salários dos vereadores, que, por sua vez, têm seus salários indexados ao dos deputados estaduais (os de Porto Alegre, por exemplo, que recebem atualmente R$ 7 100, 00, passarão a receber R$ 13 800, 00). No total, juntando os três níveis de governo, as despesas aos cofres públicos podem chegar, somente em aumentos salariais aos legisladores, a R$ 1, 66 bilhão.

Nessa semana que se inicia, um grupo de parlamentares deve entrar com ações na Justiça tentando impedir o reajuste, alegando que decisões desse tipo devem ser votadas em plenário. Esses congressistas são Fernando Gabeira (PV), Luiza Erundina (PSB), Chico Alencar (PSOL), Eduardo Suplicy (PT), Cristovam Buarque (PDT) e Raul Jungmann (PPS). A idéia desses congressistas é levar a proposta de reajuste à votação e, assim, derruba-la. O deputado Fernando Gabeira (PV) lembrou que a tática utilizada pelas mesas do Congresso e pelos líderes partidários lembra a que foi usada para a promulgação do AI-5 em 1968, durante a Ditadura Militar, efetuada perto das festas de fim de ano para se aproveitar da dispersão da população.

A cereja do bolo foi anunciada pela edição de ontem da Folha de São Paulo, que diz que os parlamentares devem requerer nas próximas semanas reformas nos prédios do Congresso Nacional, incluindo reforma nos gabinetes e nos apartamentos funcionais (estes, que os congressistas nunca usam, porque preferem alugar apartamentos com o dinheiro que recebem do auxílio-moradia), a construção de uma biblioteca, a de 71 banheiros e, acredite leitor, a de um minishopping. As obras estão orçadas em R$ 110 milhões, tudo do dinheiro público.

Mas voltando ao assunto, com a indexação dos salários dos parlamentares ao dos ministros do STF, os primeiros não mais precisarão reajustar seus vencimentos e, por assim dizer, se estressarem com a opinião pública. Isso porque, dessa forma, toda a vez em que os ministros do STF aumentarem seus salários, o dos parlamentares aumenta junto. Que maravilha, né? Como os Ministros do STF são cerca de uma dezena de juizes que mandam e desmandam no país, e que cagam sobre o que pensa o povo – afinal, os membros do Judiciário não são eleitos como os dos demais poderes e às vezes, corretamente, mandam mais que o Legislativo, numa espécie de conselho divino – aumentam seus salários quando e como querem, sem sofrerem pressão nenhuma da sociedade. Isso foi uma forma dos nossos congressistas, no momento em que seus salários aumentarem de novo, dizerem para a opinião pública: “Mas não fomos nós que aumentamos os salários, foi o STF. O nosso aumentou porque está indexado. É constitucional”.

Eu odeio o termo “(in)constitucional”. Para mim, “(in)constitucional” significa toda a decisão arbitrária tomada por alguma autoridade (geralmente do Judiciário), completamente contra o bom senso, que é mais forte que qualquer outra decisão, e que ninguém consegue entender. Por exemplo: semana retrasada, a cláusula de barreira, uma das melhores iniciativas tomadas para aperfeiçoar nosso sistema político, foi derrubada. A razão? Era “inconstitucional”. Algum da meia dúzia de juizes do STF interpretou a Constituição, como quem interpreta Nostradamus e encontra o que quiser com um pouco de esforço, e simplesmente achou que a cláusula de barreira era inconstitucional. Foda-se a decisão do Congresso Nacional! Um desses juízes tem mais poder que o Parlamento, simplesmente argumentando que é “inconstitucional”. Mas afinal, você, leitor, entendeu por que é “inconstitucional”? Nem eu.

Que fique claro que não sou contra a Constituição ou que os poderes da República estejam sujeitos a ela. Pelo contrário, o que sou contra é que a Constituição se aplique a alguns e não a todos. Afinal, o salário mínimo também é amparado pela Constituição, onde diz que este tem que atender às necessidades básicas do cidadão, de educação, saúde e lazer, e isso nunca é cumprido. Por que o STF não exige isso do Governo? Por que o argumento “constitucional” vale para seus próprios salários e para o dos congressistas e não vale para o salário mínimo?

No dia 03 de agosto, escrevi um texto nesse blog titulado Cara do Brasil, onde expressei minha surpresa em relação à reação que as pessoas tiveram à invasão do Congresso Nacional por parte de integrantes do MLST, na época. Tentava mostrar que a revolta surgida era uma hipocrisia, pois o Legislativo estava, e ainda está, completamente corrompido, sem legitimidade nenhuma da sociedade e, logo, sem cumprir suas funções no estado de direito. Contra isso, no entanto, ninguém se revoltou, mas a invasão do Congresso era “um absurdo, um vandalismo, um ataque à democracia” e outras tantas bobagens que ouvimos. Quero saber como nós, brasileiros, agora, vamos reagir a essa verdadeira cusparada na nossa cara, à falta total de respeito pelo povo que foi esse aumento de 91% dos salários dos deputados e senadores, idealizado por esse mesmo Congresso antes tão defendido contra a “barbárie dos movimentos sociais”.

O reajuste do salário mínimo vem aí.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Auto-Descrição*

Sou conseqüência do ódio e considerado um filho de Arimã – um filho fiel, diga-se de passagem. Cresci sozinho, sem pai, nem mãe, nem nada para chamar de família. Ao contrário dos mortais, talvez por eu ser imortal, nasci sabendo, ou melhor, fui criado. O Homem me criou, da mesma forma que Deus criou o Homem. E estou destruindo o Homem, da mesma forma que o Homem está destruindo Deus.

Utilizo como justificativa para os meus atos a miséria, a desigualdade, o preconceito, embora seja eu realmente fruto da maldade, do orgulho, da cólera, ou ainda, em alguns casos, da estupidez. A ignorância – que forma gangues, modas, gírias e atos – conduz involuntariamente um exército de humanos ao meu favor. Como já se disse, “para que os maus prevaleçam, basta que os bons não façam nada”.

Hoje, já sou um homem, ou melhor, uma divindade. Uma divindade que é venerada por todos, até por aqueles que me condenam, pois acreditam que a única maneira de me destruírem é utilizando os meus próprios poderes contra mim.

Idiotas! Será que não percebem que sou reflexo de suas próprias consciências, de seus próprios filhos, de seu próprio mundo? Um mundo que se revolta por não possuir espaço suficiente para expandir todos os seus graus de independência? E sem independência, “o Homem não tem honra, e sem a sua honra, o Homem mata, o Homem morre”.

Posso ser a origem da vida, como as contrações de um parto, ou o fim dela, como uma bala perdida. Não destruo a todos porque, caso isso aconteça, minha imortalidade deixa de existir, destruindo isso a mim mesmo. Mas não sou tão imbecil quanto vós: sei que a vida me convém, e faço questão de que ela exista.

A minha idade? O que importa? Sou eu quem a decido. O meu nome? Violência.
*Redação apresentada como trabalho de escola em 2000.

segunda-feira, outubro 23, 2006

A urgência de uma Reforma Política

Já vi muita gente arregalando os olhos ao me ouvir dizendo que o resultado do primeiro turno das eleições mostrou o amadurecimento que tem nosso processo eleitoral já há alguns anos. Se as explicações que tenho para dar a seguir não convencerem essas pessoas, pelo menos espero dar-lhes um pouco de paz em seus corações.

Primeiro é importante esclarecer que a opinião que dei acima se refere somente às eleições ao Executivo, tanto Federal quanto Estadual. Temos a tendência de não entender o resultado de um pleito quando este não é favorável ao nosso candidato preferido, mas é dever nosso, como pensadores do mal, procurar ver todo o processo social sob sua perspectiva lógica e racional. Assim, a força de Lula, mesmo navegando num mar de merda, não é incompreensível se observarmos alguns números de seu governo, da mesma forma que não foi um acidente a provocação de um segundo turno com Geraldo Alckmin, haja vista, afinal, o mar de merda. O mesmo vale para o RS, onde a queda de Rigotto não foi nem um pouco surpreendente, como muitos dizem, graças aos resultados de seu governo e ao seu estilo “com ninguém me comprometerei, logo a ninguém magoarei”. A escolha por uma disputa mais direta entre Olívio Dutra e Yeda Crusius é um sinal claro e preciso das urnas. Isso, porém, não é assunto para agora.

Só para não perder a oportunidade: Há quem duvide da inteligência do povo, dizendo que “o povo é burro, o povo não sabe votar”, o povo é isso, o povo é aquilo... Ora, isso é negar Aristóteles, Adam Smith, Maquiavel, Rosseau, Weber, Marx. É negar as Ciências Sociais. Na Economia, existem questionamentos semelhantes, como ao fundamento de que quando é reduzida a oferta monetária há queda na demanda por parte dos indivíduos. Alguns, então, perguntam se uma dona de casa tem consciência suficiente da queda da oferta monetária para ajustar sua demanda a ela. Talvez, de fato, ela não tenha consciência disso, mas percebe perfeitamente o conseqüente aumento do preço do pão no mercado, do custo do vestuário, do material escolar de seus filhos, do custo de vida como um todo, e isso basta para a fazer reduzir sua demanda e, logo, fazer a redução da oferta monetária atingir seus objetivos. O mesmo vale para a Política: Nem todos os indivíduos são capazes de compreender se Lula é um representante ou não da terceira via surgida com o Trabalhismo inglês, ou se ele se enquadra ou não no movimento de esquerda surgido na América Latina, ou se Alckmin tem ou não uma proposta mais clara de ajuste fiscal, ou se blá, blá, blá.., mas todos são capazes de perceber se suas vidas melhoraram ou não no sentido mais amplo da expressão, e essa simples consciência inerente a todo o ser humano já basta para tornar o processo eleitoral compreensível sob uma perspectiva lógica e racional.

Mas na Política, como na Economia, para essa racionalidade funcionar plenamente é necessário que ela se embase num eficiente sistema regulador de seu processo. Sem isso, a racionalidade não funciona em prol do que deveria, ela é distorcida e promove as aberrações eleitorais que presenciamos no último dia 1º, especialmente no processo legislativo. Aqui, prezado leitor, tenho certeza que nossas opiniões convergem, assim como o pavor que temos acerca do futuro do nosso país: também achei um absurdo a eleição de tipos como Clodovil e Paulo Maluf ao Congresso Nacional. E se isso é culpa da “burrice do povo”, a nossa, dos gaúchos, autodenominados arrogantemente os mais politizados do país, está competindo pela dianteira com a eleição de Paulo Borges e do tal Mano Changes à Assembléia Legislativa.

É evidente que algo está errado nas eleições legislativas. Por alguma razão, o eleitor brasileiro não se identifica com o parlamento, não lhe sendo perceptível sua formação e tampouco sua influência na constituição política. E é para tornar as eleições mais claras ao eleitor, para fazer com que sua racionalidade funcione com mais eficiência que uma reforma política tem se mostrado tão urgente na nossa democracia. É fato que, alterando corretamente as regras eleitorais, surpreendentemente (para alguns) transformaremos o eleitor burro em inteligente, tão quanto ou talvez mais do que já tem se mostrado nas eleições das chapas majoritárias.

Todavia, é verdade também que ainda não sabemos que reforma política queremos. Muito se tem falado a seu favor, mas pouco se tem discutido acerca de seus pontos pragmáticos. A chamada cláusula de barreira certamente foi importante nesse sentido, ao impedir inteligentemente a proliferação de partidos de pouca representatividade da sociedade, responsáveis muitas vezes por canalizar corrupção e distorcer o processo eleitoral. Se a cláusula de barreira já estivesse em vigor há mais tempo, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, por exemplo, dificilmente se elegeria senador, pois, em tese, um partido tradicional teria mais aversão a sua candidatura, tendendo a mantê-lo fora da política. Isso só não foi possível porque, como sabemos, o ex-presidente foi eleito pelo PRTB, um partideco minúsculo que provavelmente desaparecerá com a inclusão da cláusula na legislação eleitoral.

Outras questões de uma eventual reforma política também são importantes, como uma maior distritalização das nossas eleições legislativas. Convém frisar que, de certa forma, elas já são distritais, pois nós, gaúchos, por exemplo, elegemos os deputados e senadores daqui, do RS, os mineiros os de MG, os amazonenses os de AM, e assim por diante. Por isso falei numa maior distritalização, com a fragmentação das eleições em alguns estados em regiões menores e com um número menor de candidatos por região, o que permiteria aos eleitores conhece-los melhor a fim de aperfeiçoar suas decisões. Outro debate importante cerca a questão do chamado voto em lista fechada, onde o eleitor votaria num determinado partido político, ou numa coligação de partidos, que já teria uma lista previamente divulgada com seus candidatos que se elegeriam proporcionalmente à quantidade de votos que esse partido, ou coligação, receberia. Embora o eleitor perca sua liberdade de escolher especificamente o candidato que deseja eleger, a lista fechada incentivaria o voto em partidos e coligações, tornando o processo e o confronto político mais claro e objetivo, além de exigir dos partidos mais responsabilidade para com seus programas e ações.

O ponto de uma reforma política mais debatido atualmente gira em torno do financiamento público às campanhas eleitorais. Infelizmente, porque até agora não ouvi nenhum argumento que me convencesse que isso inibiria a obtenção de “dinheiro não contabilizado”.

Obviamente, uma reforma política deve envolver outras questões mais que as aqui citadas. O objetivo dessas linhas não é discuti-las, mas enfatizar a importância de uma reforma e incentivar a discussão acerca do aperfeiçoamento democrático no Brasil. A democracia é dinâmica, devendo ser construída e melhorada sempre, e não deixada num altar como algo a ser venerado sem questionamentos quanto a sua funcionalidade. Creio que os brasileiros já assimilaram seus princípios. Temos agora que atingir seus fins.

sábado, setembro 30, 2006

Manifesto de Repúdio

No dia das eleições, isso é um manifesto de repúdio.

Repúdio a tudo que representa o atraso, a manutenção das coisas, dos fatos, das situações. Repúdio à hipocrisia.

Repúdio às próprias eleições desse fim de semana, que nos levam às urnas a fim de nos fazer legitimar esse processo completamente superado, e querer repassar ao eleitor a responsabilidade pelo caos social e institucional em que estamos metidos.

Repúdio ao Governo, que ainda se considera capaz de liderar um processo de desenvolvimento sem entender que este é de caráter social, envolvendo a sociedade enquanto fim e não enquanto ferramenta.

Repúdio às elites nacionais, que acham que sabem o que é bom para o povo.

Repúdio ao povo, que também acha que existe uma elite que sabe o que é bom para ele.

Repúdio à desigualdade social, que é a característica principal da nossa sociedade, geradora de seus principais problemas, mas que por ela é conservada e almejada como uma cicatriz de que nos orgulhamos.

Repúdio ao PT, que não reconhece o mar de corrupção em que navega e em que pôs o país, negando suas propostas progressistas e ao querer fazer da ineficácia da nossa democracia um mérito seu.

Repúdio ao PSDB, que tenta construir uma experiência futura negando as suas passadas, ao ser incompetente na tentativa de mostrar ao país sua situação, e ao fazer parte do jogo político que tanto critica, como se fôssemos idiotas e não soubéssemos disso.

Repúdio ao PMDB, que se prostitui em nome do poder ao ser um dos partidos mais fáceis de se comprar. Que não representa alternativa alguma, sendo somente mais um a sustentar os coorporativismos que acabam com a nossa máquina pública.

Repúdio ao PFL e ao PP, que mantém oligarquias inteiras no país, como no Nordeste e aqui, no RS, dando voz ao que existe de mais podre na nossa sociedade, ao que significa o atraso e o privilégio em cima da manutenção das desigualdades.

Repúdio ao PSOL, PSTU, PCO e outros tantos partidecos, sustentados por uma base que também zela pelo coorporativismo, que se infiltram nos movimentos sociais, sindicais e estudantis, os partidarizando e os destruindo graças a brigas entre si, cuja importância é completamente nula para o amadurecimento político.

Repúdio ao empresariado nacional, que reclama do Estado quando este lhe cobra impostos, mas é o primeiro a exigir dele proteções e incentivos, assim como seguros, garantias e outros formas de defender o seu patrimônio, escancarando sua mesquinharia irresponsável para com o país.

Repúdio às igrejas, todas elas, que se instalam na nossa formação social, se não como hábitos, como idéias, fazendo de nós um bando de conservadores subnutridos, que não sabemos nem sequer o que queremos conservar.

Repúdio à família brasileira, que se constitui no princípio de todas as nossas demais instituições e que zela pela preservação do paternalismo, do machismo, do racismo e de todas as relações de submissão em que vivemos.

Repúdio aos nossos setores ditos liberais, que deixam de lado os fundamentos da formação do nosso país em nome de bandeiras caricaturadas de seus reais idéias, como se legalizar a maconha fosse sinônimo de modernidade.

Repúdio a todos os consensos que nos rodeiam, e que se infiltram na nossa interpretação acerca da realidade, não nos fazendo perceber a insensatez da nossa constituição social e o quão ela deveria ser diferente.

E um repúdio a nós, brasileiros, e à nossa incapacidade de se revoltar, à nossa aceitação das injustiças e absurdos sociais e políticos como coisas normais. À nossa acomodação como se nada nos interferisse, à nossa irresponsabilidade com o futuro, ao nosso egoísmo enquanto povo. À nossa preguiça social.

Isso é um manifesto de repúdio.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Eficiência e Competitividade

Eficiência e competitividade andam juntas. Enquanto no texto anterior, fiz uma pequena abordagem sob uma perspectiva teórica acerca da eficiência, aqui seguirei de certa forma no mesmo tema, mas de um ponto de vista mais empírico.

Ontem, foi anunciado na imprensa o resultado do Índice de Competitividade Global 2006-2007, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial (FEM). Num ranking, como é de se esperar, o Brasil caiu vergonhosamente da 57a para 66a posição num total de 125 países, sendo essa a nossa sexta queda consecutiva, perdendo 29 posições desde 2001.

Ficamos atrás de países emergentes importantes, como Índia(43ª), África do Sul(45ª), China(54ª), México(58ª) e Rússia(62ª). A Argentina se encontra três posições atrás do Brasil, na 69ª.

As causas do mau desempenho brasileiro não são novidades para os observadores atentos das reais causas do marasmo econômico verde-amarelo. Segundo o relatório do FEM, o Brasil vem sendo prejudicado por dois fatores dos nove que compõem o índice: o macroeconômico e o institucional. Nesses pontos, e aqui se enfatiza ainda mais as idéias que expus no texto anterior, é dado destaque à questão do grande endividamento público e, de acordo com os próprios termos utilizados pelo relatório, à “predominância da corrupção” no país.

E para que não se confunda tamanho com eficiência do Estado, como muitos o fazem, vê-se que países onde a participação do governo na vida econômica é tradicionalmente grande, vigorando ainda os pilares do estado de bem-estar social, ocupam as primeiras posições do ranking, como a Finlândia, a Suécia e a Dinamarca, que se encontram entre os cindo países mais competitivos do mundo, na frente dos EUA, Japão, Alemanha, Holanda e Reino Unido. A própria Suíça, que se encontra na 1ª posição, é considerada um país de grau considerável de protecionismo.

São dados como esses que nos fazem refletir ainda mais acerca da influência do governo no nosso desenvolvimento nacional, num momento em que a crise do setor público brasileiro se mostra maior que nunca e se transfere a toda a economia, nos induzindo muitas vezes a aceitar idéias simplistas e despojadas de rigor teórico e prático.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Origens e Causas das Ineficiências do Estado Brasileiro*

A questão da ineficiência do Estado brasileiro é um dos temas em maior evidência atualmente no país. O endividamento público, a má qualidade dos serviços prestados pelo Estado e os recentes casos de corrupção destacaram ainda mais esse assunto nos mais diversos setores da nossa sociedade. O papel do Estado passou a ser visto no Brasil por uma ótica diferente da existente até o início da década de 1980: não mais como o condutor do desenvolvimento econômico, mas como um obstáculo a este. O afunilamento desse debate na questão da eficiência com que o Estado brasileiro exerce suas funções e promove suas políticas enaltece o caráter endógeno que tal discussão tem em relação ao setor público.

É interessante inicialmente entendermos do que estamos tratando como eficiência. Na teoria econômica, entende-se por eficiência qualquer situação decorrente da interação entre agentes em que o bem-estar de um não pode ser melhorado sem a piora do bem-estar de um outro. Essa idéia nos é trazida pelo conceito de eficiência de Pareto, numa referência ao economista e sociólogo italiano Vilfredo Pareto (1848-1923), que inicialmente estudou o conceito de eficiência. Esse conceito implica que, numa situação de eficiência, não há como fazer com que todos os agentes envolvidos melhorem seus bem-estares numa mesma interação, ou, noutras palavras, que não há como fazer com que o bem-estar de um agente melhore sem piorar o bem-estar de outro. Quando tratamos, portanto, da ineficiência do Estado brasileiro, estamos afirmando que seria possível a ele atuar de forma a melhorar o bem-estar de determinado grupo de agentes sem piorar o bem-estar de outro, ou, de uma forma mais ampla, melhorar o bem-estar de todos os agentes. O Estado brasileiro é ineficiente, logo, porque, embora possa melhorar o bem-estar da sociedade como um todo, não o faz.

A teoria econômica nos diz que a eficiência é obtida através de transações no mercado, ao se exaurirem todos os ganhos de troca num modelo estático. Ao Estado, a eficiência requer outros mecanismos de alcance, pois a ele cabe, em tese, o fornecimento de bens e serviços que não podem ser transacionados no mercado, os chamados Bens Públicos. Esse tipo de bem se caracteriza por ter que ser fornecido numa mesma quantidade para todos os agentes consumidores, haja vista que nenhum agente pode ser excluído de seu consumo. Um exemplo típico de bem público é o serviço de segurança nacional ou o calçamento das ruas, que é fornecido a todos os consumidores indiscriminadamente (não é possível ser prestado o serviço de segurança nacional a somente um grupo de consumidores, excluindo-se outro). Inexiste, portanto, uma relação entre oferta e demanda, impedindo que esses serviços tenham seus preços definidos pelo mercado. Estes, então, são fornecidos pelo Estado a todos os agentes, de quem cobra mesmos preços por não ser possível verificar suas diferentes preferências reveladas. A prestação desses serviços é, logo, por definição, ineficiente, pois cobra dos agentes um preço que não equivale às diversas utilidades marginais que tais serviços lhes proporcionam. Há também o problema da existência do agente free-rider, que, por não poder ser excluído do consumo de um bem público, é incentivado a fazê-lo sem pagar por seu fornecimento – uma pessoa que sonega impostos, por exemplo, continua usufruindo a segurança nacional e o calçamento das ruas. Na realidade, porém, o Estado não é fornecedor somente de bens públicos stricto sensus, ao forcecer serviços de educação, saúde, rodovias etc, além de existir uma grande gama de empresas estatais que nem sempre determinam suas políticas pelas regras de mercado. O objetivo de ações como essas é fazer com que as externalidades positivas geradas pelo fornecimento desses bens/serviços pelo Estado sejam maiores que as perdas com eficiência.

Ademais, o crescimento das funções do Estado a partir da ascensão do Keynesianismo fez elevar os gastos públicos, elevando também, no entanto, os desperdícios de recursos públicos e a corrupção. A idéia de que a excessiva intervenção do Estado no mercado gera perda de bem-estar foi enfatizada a partir dos anos 1980, com a teoria conhecida na literatura como rent-seeking. Esse conceito trata do fato de que, com a perda de eficiência e a corrupção provocada pela intervenção do Estado na economia, haveria o privilégio de determinados grupos sociais em detrimento do conjunto da sociedade. Rent-seeking é toda a ação feita por determinado indivíduo em busca de renda econômica no detrimento do bem-estar-social. Essa atividade ganha importância à medida que o Estado se torna mais burocrático, ao permitir privilégios a determinado grupo social através da instituição de monopólios, licenças, quotas, concessões, franquias etc.

O Estado brasileiro não poderia ser diferente no que se refere à sua submissão aos problemas citados. No nosso país, porém, esses problemas talvez sejam mais atuantes por ter sido o Estado, aqui, o principal promotor do desenvolvimento econômico no último século. A ineficiência do Estado no Brasil se evidencia pela alta carga tributária cobrada da sociedade, de caráter regressivo, em comparação com os serviços públicos prestados, aquém das necessidades da população e também de caráter regressivo. Uma das críticas feitas a essa ineficiência diz que, cobrando da sociedade menos que cobra hoje, o Estado seria capaz de prestar serviços de qualidade semelhante, deixando mais renda nas mãos das famílias e empresas que, através do mercado, a alocariam de maneira mais eficiente. Essa crítica é maior sobre a atuação do Estado no fornecimento de bens, no rigor teórico, não-públicos, como os de saúde e educação, além de questões de infra-estrutura e do próprio custeamento da máquina pública. Além disso, o elevado tamanho do Estado brasileiro é apontado como causa da permissividade que tem para com a corrupção de suas instituições, o que implica diretamente na ineficiência de suas ações. Por fim, o grande poder de atuação que tem o Estado brasileiro torna conseqüentemente mais poderosa a força que grupos coorporativistas têm sobre ele, o que é inerente à política e à democracia, conduzindo, no entanto, as ações do Estado no interesse desses grupos em detrimento do bem-estar da sociedade como um todo – o que se torna mais forte aqui pelo fato de que, como se disse, no Brasil o Estado ter tido mais importância no processo de desenvolvimento que noutros países. Particularmente ao caso brasileiro, caberia ressaltar também a incompetência do Estado enquanto promotor do ambiente institucional que favoreça a atuação do mercado, que significa na prática a transferência de sua ineficiência ao setor privado e o prejuízo de eficiência em toda a economia.
A questão da eficiência do Estado no Brasil tem um caráter histórico de cujo enfrentamento se mostra complexo e árduo. Não se trata somente de alterações na estrutura de funcionamento do Estado, mas na concepção que a sociedade tem acerca de sua atribuição, alcançando a solução desse tema um caráter que extrapola a área de atuação da Ciência Econômica. A esta, cabe o papel de apontar às possibilidades de contorno da ineficiência estatal conforme o embasamento teórico sugere, objetivando que essa retórica anteceda a inviabilidade econômica no convencimento das forças políticas a adotá-las.
*Artigo apresentado ao curso de Política e Planejamento Econômico da Faculdade de Ciências Econômicas/UFRGS, em 2006/02.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Pequeno Tratado sobre a Felicidade

Poucos assuntos interessam tanto aos economistas quanto a felicidade. Afinal, a felicidade é o fim de toda ação humana, e a ação humana é o objeto de estudo dos economistas. Claro, é um tema que transcende o campo da Ciência Econômica, mas que nela também se encontra. O conceituado economista brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca, por exemplo, já publicou um livro chamado Felicidade, tratando do assunto.

E quando a Economia trata da felicidade, como é de se esperar, o tema acaba se moldando à linguagem dessa área, assim como ocorre quando é tratado pela Psicologia ou a Sociologia. Embora não nos seja mais uma unanimidade, a felicidade em Economia é tratada pelo que conhecemos como Utilitarismo, desenvolvido pelo filósofo Jeremy Bentham (1748-1832). Não se trata, stricto sensus, do tratamento da felicidade como tema principal, mas procura mostrar como os indivíduos agem em busca de coisas que lhes dêem mais satisfação. O Utilitarismo trouxe alguns insights importantes acerca do comportamento humano, como a idéia de plena consciência que os indivíduos têm do que preferem, a transitividade dessas preferências, e o princípio da insaciedade, ou seja, que os indivíduos sempre preferem mais a menos. Outro ponto importante nos trazido pelo Utilitarismo é a impossibilidade de agregarmos preferências, ou seja, que o que traz satisfação a um indivíduo pode ser completamente desagradável a outro. Este último princípio foi um dos argumentos mais fortes contra os modelos coletivistas de sociedade que pregam a igualdade entre pessoas com desejos e fontes de satisfação desiguais, como o ocorrido em diversas experiências comunistas ao longo do século passado. A idéia é simples: eu não gosto de rúcula, mas há quem goste. Se toda a alimentação da população fosse igual, e contivesse rúcula, minha satisfação certamente seria menor que a que eu obteria caso pudesse escolher livremente o que comer. Eu seria, com a rúcula, menos feliz.

Parei, então, esses dias, para pensar sobre o tema felicidade, mas por uma perspectiva mais ampla. E uma coisa que sempre me incomodou sobre isso foi a idéia de felicidade como algo estático na vida. Explicando: existe hoje, na mente das pessoas, a idéia de felicidade como um fim a ser alcançado na vida, uma idéia midiática de felicidade, existente só em alguns comerciais de televisão. A felicidade é vista como um ponto de ótima satisfação, acima do qual não há mais nada a ser alcançado.

Pois penso ser isso a causa de muitos males sociais. Acredito, sinceramente, que não existe felicidade para sempre – por mais chocante que isso possa parecer aos ouvidos de alguns. Se serve de consolo, tampouco acredito em tristeza para sempre. E digo isso com embasamento biológico, porque a ciência sabe que felicidade e tristeza não constituem estados permanentes de sentimento humano, mas passageiros, que se alternam no dia-a-dia conforme os momentos que vivemos. Parece óbvio, eu sei. Mas há, creio, uma busca incessante e irracional por felicidade pelos indivíduos, por um ponto de máxima satisfação que, de acordo com a minha idéia, é inalcançável. As pessoas, então, se tornam frustradas, pois tentam alcançar uma coisa que não existe. Sem saberem disso, a busca por felicidade os leva a ações extremas, o que explica muitas das perversões ou atos sem sentido que alguns indivíduos praticam, numa Juventude Desviada que independe de idades. Busca-se, por exemplo, a felicidade eterna nas drogas, no descumprimento de leis, na violência, sempre objetivando eliminar uma frustração sem causa e alcançar a um nível de felicidade que não existe.

Essa idéia de felicidade eterna é um mal do mundo moderno nos trazido pelos meios de comunicação ou em conselhos de vendedores da fórmula da satisfação. Basta fazermos uma visita a qualquer livraria para verificarmos a quantidade de livros de auto-ajuda que encontramos, contando maneiras de como ser feliz, como ter sucesso, coisas do tipo. Os anúncios comerciais são ainda mais diretos, pois deixaram de vender produtos e passaram a vender felicidade. Não compramos mais pela necessidade que temos das coisas, mas por quão felizes seremos com elas. Informações desse tipo são tantas e tão abrangentes no mundo globalizado que hoje uma criança pobre da Arábia Saudita tem total conhecimento e consciência do padrão e estilo de vida de uma contemporânea sua nos Estados Unidos. Cria-se nela, então, uma idéia de felicidade que se encontra muito além de suas capacidades, que se alcança muito longe dela. Surge, enfim, uma criança frustrada, que busca algo que não existe, sem saber.

Compara agora a Arábia Saudita à uma favela brasileira e pensa nas conseqüências dessa situação. O Brasil não é tão difícil de entender, né? É só fazer um esforcinho...

O problema é que a criança nos Estados Unidos, que, por sua vez, podemos comparar a um jovem do Bela Vista, em Porto Alegre, tampouco é feliz, pois para ele a felicidade também se encontra além, se encontra distante. Este, então, da mesma forma que o indivíduo da favela, passa a procurar a tal felicidade eterna, mas à sua maneira, em rachas de automóveis, pondo fogo em índio - como o famoso caso de Brasília - no álcool, no consumo compulsivo de uma tarde no shopping.

A forma como a sociedade contemporânea tem enfrentado a vida criou uma busca fantasiosa na mente das pessoas que pode se transformar, se já não se transformou, num perigo a nós, mesmos. O antigo lema que sempre ouvidos, que “a felicidade deve ser buscada nas pequenas coisas”, parece estar requerendo novamente seu lugar no ambiente social em que nos encontramos, sob pena de sermos destruídos em nome de uma felicidade muito além dessa (a das pequenas coisas), que é simples, mas realista. E não estou dizendo que devemos abandonar o nosso objetivo de sermos felizes, mas, como ouvi há um tempo de uma sábia senhora, “seríamos muito mais felizes se parássemos de correr tanto atrás da felicidade”.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Cara do Brasil

A surpresa é a causa dos textos que aqui se encontram.

Há algumas semanas, o Congresso Nacional foi invadido violentamente por mais de 500 manifestantes de um tal Movimento de Libertação dos Sem-Terras (MLST), o que resultou na destruição de parte da luxuosa decoração do Parlamento e no ferimento de pelo menos 26 pessoas, dentre as quais uma em estado grave que, por sorte, já se recuperou. Foi de deixar a torcida do Grêmio com inveja: o primeiro alvo dos baderneiros – compostos também por mulheres, crianças e idosos – foi um carro zero quilômetro que seria sorteado na festa junina dos servidores. Tadinhos, ficaram sem festinha de São João... Tudo isso, sim, muito triste e lamentável.

Mas se enganam os que pensam que a surpresa desses rabiscos é a invasão do Congresso, em si. Não é. Aliás, pelos menos aqui, não pretendo fazer nenhuma análise rigorosa desse ato praticado pelo MLST – ideologias envolvidas, razões, histórico dos fatos, números etc. Isso, aqui, não tem importância. Basta olhar pela janela da nossa confortável e aconchegante casa para perceber o quão surpreendente é o fato do prédio do Congresso ainda estar de pé.

Mas deixemos a janela de casa um pouco de lado e vejamos através de outro meio de comunicação muito mais fácil de ser compreendido, cuja instrução pré-requisitada é muito inferior que a pela realidade: a televisão. Através dela, acompanhamos nos últimos meses não a um, mas a vários, mudando somente de intensidade, casos de corrupção envolvendo (quem diria?) exatamente o Congresso Nacional. Vimos o surgimento do mensalão através dos contagiantes depoimentos do deputado Roberto Jéfferson, hoje ídolo do PTB, acusando seus excelentíssimos colegas de receberem dinheiro do Executivo, oriundo de empresas estatais, a fim de aprovarem os projetos do Governo. Vimos, então, a eleição de um personagem de história em quadrinhos, Severino Cavalcanti, para presidente do circo, através de um jogo de politicagem que deve ser evitado em horários de refeição. Pior que isso, só sua saída do cargo, provocada por razões que me deixam sem lado para torcer... Nesse meio tempo houve de tudo um pouco: dólar na cueca, dezenas de ações da Polícia Federal e aí vai. Fatos não necessariamente interligados, mas representando um mesmo mal. Já estávamos quase esquecendo de tudo, cansados das notícias, quando mais um fato nos trouxe à memória a situação em que nos encontramos: os tais sanguessugas. Se antes a coisa já estava ruim, nessa os excelentíssimos se superaram: um em cada seis deputados envolvido no superfaturamento da compra de ambulâncias. Em suma, roubalheira geral, tudo questão de milhões e milhões de reais. Foi-se o tempo em que os educados diziam ser a maioria dos parlamentares honesta, sendo um pequeno grupo responsável por esses fatos lamentáveis. Viu-se ser exatamente o contrário. E basta olhar as pesquisas acerca da credibilidade do Congresso para ver que isso não é só uma impressão minha. Aliás, que saudade do tempo em que era só impressão...

Na comparação desses casos com o da invasão do prédio do Congresso por manifestantes do MLST, não vou tratar da, digamos, gravidade deles. Vou supor que todos que estejam lendo esse texto tenham capacidade suficiente de perceber essas nuances. Tratarei somente das conseqüências. No caso da invasão, todos os manifestantes foram imediatamente presos. Sim, eu disse todos, os mais de 500, inclusive as crianças, que foram levadas a instituições especializadas. Aos poucos, foram sendo liberados, instaurando-se, no entanto, processos judiciais contra 115 deles, sendo que 41 permanecem na cadeia. Pergunto: quantos dos deputados envolvidos nos casos de corrupção que, como disse, envolveram milhões de reais, foram presos? Nenhum! Nem unzinho! Estão todos soltos, e a minoria deles voltará ano que vem, após as eleições. Eu disse minoria porque a maioria não vai precisar voltar, pois nem teve que sair. Não foi sequer cassada, tampouco teve que renunciar aos seus cargos. Uma impunidade revoltante que contrasta com o rigor da lei aplicado sobre os baderneiros do Congresso.

É... Mas a surpresa de que falei na primeira frase vem agora, ou melhor, veio quando percebi que o contraste do rigor da lei era exclusivo aos meus olhos. O conservadorismo brasileiro se manifestou como poucas vezes nas inúmeras vozes que se levantaram contra os integrantes do MLST. De todos os lados, inclusive de amigos meus, ditos de esquerda. Acharam um absurdo a invasão do prédio do Congresso, um ataque a uma instituição democrática e, logo, à democracia, ao estado de direito. Clamaram por opressão contra esses movimentos de sem-terras, que ficam invadindo terras por aí, atacando a propriedade privada e a liberdade individual. Estranho... Por que não chamam de “ataque a uma instituição democrática” toda a corrupção que envolveu o Parlamento nesses últimos meses? Será que não se trata de um abalo à democracia muito maior que a quebra da estátua do Mário Covas da entrada do Congresso? Não será um ataque ao estado de direito toda a impunidade com que os casos de corrupção dos congressistas foram tratados? Por que meus amigos não clamam em seus blogs, os jornais em seus editoriais, as revistas, as pessoas, por opressão contra os deputados corruptos e por um rigor legal sobre eles tão grande quanto o sobre os manifestantes do MLST? Por que, afinal, soou tão absurdamente a invasão por populares, mesmo que parcial, de uma instituição pública já comprovadamente sem legitimidade da sociedade?

Costumo dizer que, quando houver planos de uma nova invasão do Congresso, me chamem que vou junto. Não, não estou defendendo a impunidade. Pelo contrário, o que estou defendendo é a aplicação da mesma lei para todos. Isso é que define uma democracia, e não a invasão ou não do Congresso Nacional. E, sim, estou criticando a nós, mesmos, brasileiros, e à nossa visão tosca acerca da nossa própria realidade, ao nosso conservadorismo, ao nosso amor às desigualdades - de todos nós, até mesmo dos meus amigos de esquerda.

O contraste entre as conseqüências da corrupção dos deputados e as do vandalismo do MLST, e o pior, com o nosso apoio subentendido, retrata uma coisa que aprendemos desde criança, que qualquer cachaceiro num boteco ou uma dona de casa sabe, e que os intelectualóides nacionais insistem em não admitir, que, no Brasil, somente pobres, pretos e putas vão para a cadeia. Aprendo mais sobre a realidade brasileira em ditos populares que na universidade.

segunda-feira, junho 05, 2006

Medo de Mim

E se a existência fosse um parque de diversões?
Que valor teria o ingresso
não fosse o medo da montanha russa?

Ah, quem me dera fosse eu
mais que um protagonista da vida
mas a vida uma protagonista de mim, mesmo.

Pois bendito seja o medo,
que masturba os corajosos!

terça-feira, maio 23, 2006

O que alguns não entendem sobre a crise do gás

Nessas últimas semanas, o Brasil tem vivido momentos inusitados nas suas relações internacionais com seus vizinhos. Com um particularmente, originado pelas ações pouco ortodoxas de seu presidente: estou falando, claro, da Bolívia e da nacionalização do gás natural desse país realizada pelo presidente Evo Morales, acontecimento que ocupou as manchetes dos jornais brasileiros mais do que os de qualquer outra nação, devido à influência que tal ato nos terá. Isso se deve ao fato do gás boliviano abastecer todas as indústrias da região Sul do Brasil, além de 75% das da região Sudeste, abastecimento esse que poderá ser prejudicado com a intenção de aumento de preços do gás requerido no ato de nacionalização das reservas. Brasil e Bolívia têm uma relação muito estreita quando o assunto é gás natural. O abastecimento do mercado brasileiro ocorre através de um dispendioso sistema de infra-estrutura construído pela estatal brasileira Petrobrás. Suas refinarias na Bolívia, por sua vez, são responsáveis por cerca de 20% do PIB daquele país, fazendo mútua a dependência desses países. A nossa, no entanto, foi opcional, pois se enganam os que pensam que o Brasil está nas mãos da Bolívia. A compra do gás boliviano tem caráter muito mais político que econômico, evidenciado pelo anúncio feito semana passada da auto-suficiência em gás que nosso país terá até 2008. Dilma Roussef, atual Chefe da Casa Civil do governo brasileiro e ex-Ministra de Minas e Energia, esclareceu isso ontem ao afirmar no programa Roda Viva, da TV Cultura, que “o gás boliviano é substituível ao Brasil; o Brasil não é substituível à Bolívia”, haja vista que o Brasil é o maior importador do produto daquele país.

A excentricidade da, como é agora popularmente conhecida, crise do gás, ou crise da Bolívia, tem motivos, portanto, que ultrapassam o senso comum daqueles que analisam os fenômenos sociais simplesmente pelo que eles parecem ser. Talvez por isso, tem ficado escancarada a imaturidade como determinados setores da nossa sociedade se comportam diante de situações como tal. Devo admitir que me choquei com a forma através da qual parte da imprensa e alguns dos nossos chamados formadores de opinião, inclusive congressistas, “defenderam o interesse nacional” com suas penas e discursos, o que logicamente se refletiu noutros setores sociais, digamos, menos capazes de compreender a complexidade da questão. Até parece que a Bolívia não tem razões para fazer o que fez: 70% de sua população vive na pobreza, carecendo de infra-estrutura básica e vivendo num isolamento da conjuntura mundial que, até no Brasil, nos é cotidiano, como globalização, fluxo de capitais, negociações em organismos internacionais etc. É cômico ouvir algumas pessoas falar que o ato de Morales vai afastar os capitais da Bolívia. Pergunto: que capitais? Pelo jeito, alguns pensam que estamos tratando de um país emergente, inserido internacionalmente, brigando por investimentos com a China, com uma política de câmbio que favoreça as exportações, buscando a queda de seu risco-país e blá, blá, blá... Ora, a Bolívia é um país fora desse jogo, sem muito o que perder. É equivocado pensar que a nacionalização do gás lá terá as mesmas conseqüências que teria tal ato num país como o Brasil. As idéias pela “preservação de contratos” na Bolívia, para que não se perca sei lá eu o quê, formam parte do conjunto de ideologias em prol dos 30% da população rica, e não de toda a população. As elites bolivianas fazem uma coisa já bastante tradicional a esse grupo social: fazer com que seus interesses pareçam interesses de todos.

Que fique claro que não quero ser a simbologia do fogo amigo, defendendo o que não convém a nós, brasileiros. Mas como cientista econômico procuro fazer... ciência, e não pregação religiosa. Por exemplo, não gostei nada de ver a sede da Petrobrás cercada pelo exército boliviano, e sobre isso, como brasileiro, também quero explicações do companheiro Evo. A Petrobrás é uma empresa estatal, representando um governo eleito que sempre apoiou o novo governo boliviano. Tenho certeza que, se fosse proposta a renegociação dos preços do gás, o governo brasileiro aceitaria. Além disso, declarações feitas por Morales, como as de Viena sobre a compra do Acre, também não contribuíram em nada para que a decisão de nacionalizar o gás ocorresse de forma diplomaticamente mais suave, sem ser, necessariamente, menos rigorosa. A conseqüência foi a manutenção do chamado plano B por parte do Brasil - o de concretizar a auto-suficiência em gás - a fim de evitar outros problemas como esse, devido à falta de confiança nossa para com o Bolívia criada durante a crise. E isso, sim, pode afastar investimentos da Bolívia, até os da Petrobrás, a única empresa estatal das que lá investem e que, em tese, seria a única a ter seus investimentos garantidos no país, pelo fato de ter um Estado como credor. O erro de Morales, portanto, não foi econômico, mas político, ao querer transformar um ato legítimo e coerente numa manifestação de politicagem, coisa, cá entre nós, desnecessária.

Não sabemos exatamente como os acontecimentos se prosseguirão a partir daqui. A ida do nosso Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, à Bolívia, solicitando indenização à Petrobrás, põe em questionamento a até então amigável relação entre os dois países. Do nosso ponto de vista, admito que pouco podemos fazer: se se concretizarem as idéias bolivianas, e creio que, em algum nível, se concretizarão, o Brasil acabará admitindo o aumento dos preços do gás, talvez protestando em algum organismo internacional, nada mais. Retaliações mais fortes não devem acontecer, ao contrário do que pensam alguns. A importação do gás boliviano é politicamente estratégica para o Brasil, que tem um projeto de integração do continente sob sua liderança. E mesmo que a auto-suficiência nos seja possível em 2008, é bem provável que a importação do produto da Bolívia continue, pois esse é um assunto mais amplo que as capacidades de entendimento puramente técnicas e econômicas.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Tosse

Era desordem a forma em que se encontravam seus pensamentos quando se deu conta disso no único momento de consciência que teve, ao acordar de súbito, no meio da madrugada. Foi uma surpresa, pois ainda nem sequer havia dormido. A sabedoria do tempo, no entanto, depois lhe esclareceu que aquela confusão de pensamentos era exatamente fruto do típico transe em que entramos quando estamos na fronteira do sono. E que tosse! Aquela tosse terrível fora a responsável por lhe inibir o sono a noite toda. A tosse era um transtorno ao rumo natural das coisas, e assim não poderia ser.

Na verdade, a tosse estava associada à posição de seu tórax quando dormia. Pô-lo na horizontal o fazia tossir, já havia pensado nisso. Se pelo menos pudesse dormir em pé... A tosse era um desafio ao dever de acordar cedo na manhã seguinte, uma audácia que não era bem-vinda. Acabava se mantendo acordado na luta pela obrigação do descanso, e de acordar cedo, o que ajudava a manter o transe. Que tosse maldita!

Aquela tosse era a significação física de tudo que sentia e não era, digamos, fisicamente expressável de outra forma. Ninguém morre de tosse, mas é impossível conviver com ela. E assim era... Era uma tosse dentro do coração.

Pensando bem, morre-se de tosse... Ah, morre-se, sim.

Seu coração tossia, fazendo tremer todo o restante de seu corpo, o impedindo de descansar. Tossia por uma causa antiga. Tratavam-se de resquícios de uma doença passada, porém mal curada. Seu coração tossia porque ainda não estava curado.

Haveria de ser uma tosse crônica... Sua tosse tinha um nome...

Enquanto não aprendia a conviver com o sentimento da tosse, rolava pela cama em busca do sono. Rolar na cama era a morfina para o que sentia, mas em outros braços, e não daquele jeito, rodeado de uma confusão de pensamentos. Ah, os braços da tosse... Que vontade...

De repente, parou de se debater. Sua mente se tranqüilizou. Seu coração jamais o faria, mas decidiu dar uma trégua, pelo menos, em nome de uma paz momentânea. Não era a cura, sabia. Poderia ser a morte, mas era somente o sono.

Estava, enfim, cansado de tossir...

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

O que realmente deveria mudar

Sou um dos raros (ex-)petistas que acha que uma das poucas coisas que presta no Governo Lula é a política macroeconômica. O atual governo tem buscado controle rigoroso da inflação mesmo ao custo de sua popularidade, tratando a questão dos juros como conseqüência de uma série de distúrbios da nossa economia, e não como causa, como tantos simplistas apontam. Além disso, prosseguiu com um objetivo que tem se buscado desde a crise de 1999, e que representa uma verdadeira revolução no Brasil: equilíbrio fiscal. Ter um governo que visa não gastar mais do que arrecada é o maior choque cultural que nossa sociedade vem sofrendo nos últimos anos – apesar do superávit ser ainda apenas primário, e não nominal. Afinal, estabilidade de preços e equilíbrio fiscal das contas do Estado são coisas de país sério. Nem parece Brasil...

As causas que me fizeram sair oficialmente do PT ano passado, portanto, são outras. O estopim para minha decisão, porém, não poderia ser outra: os casos de corrupção envolvendo o Governo, claro. E isso porque nós, você e eu, petistas, temos a péssima mania de responder pelo que nossas administrações fazem. Aquele negócio de “vestir a camiseta”. Obviamente, ninguém quer ter que responder às denúncias contra o Governo, ainda mais no estado de choque onde ainda nos encontramos. Então, enquanto os que votam em outros candidatos sentem-se livres de responsabilidades pelo que seus candidatos fazem, nós, você e eu, petistas, nos sentimos intimamente ligados e responsáveis pela forma como nossas administrações atuam (entendeu? “nossas...”). A fuga disso, quando ocorre o que vem ocorrendo, acaba sendo, inevitavelmente, a saída do partido. São conseqüências de se pôr a cara ao tapa, de estar no, até então, único partido do país que era verdadeiramente... partido.

Mas minhas críticas ao Governo Lula não se limitam a esse fato. E isso se explica porque, assim como a maioria dos brasileiros, também votei no Lula ansioso por mudanças, e estas não vieram. Não trato aqui de mudanças na política econômica, mas sim de mudanças nas políticas públicas, na utilização do Estado como ferramenta de transformação social. A ansiedade que tinha se mantém não somente devido a ações desastradas do Governo, mas também à sua ausência numa série de questões fundamentais aos que desejam transformar o país e o colocar num caminho de desenvolvimento.

Podemos iniciar a exemplificação dessas ausências com pontos específicos. Das ações que buscam realmente transformar o país, a reforma da previdência foi a que mais se aproximou desse objetivo, mas nem perto solucionou o problema que tende a se tornar cada vez maior com o passar dos anos. Embora tenha tocado em questões pertinentes, consistiu, de fato, numa redução dos salários dos pensionistas que já recebem o benefício, nada mais. Podemos esperar sentados, pois outra reforma será necessária nos próximos anos, e a dor vai ser maior.

Mas decepcionante mesmo foi a reforma tributária. A forma de arrecadação de impostos é uma das ferramentas essenciais ao desenvolvimento, podendo permitir ou não competitividade a setores da economia, além de qualificar e quantificar a arrecadação dependendo dos setores sobre os quais esses impostos mais recaem. Ademais, a tributação é um mecanismo poderoso de distribuição de renda, o que auxiliaria na resolução de um dos maiores, se não o maior, problema da nossa sociedade. Pois a reforma tributária do Governo Lula apenas alterou algumas alíquotas, não mexendo na estrutura da carga, tão pouco no seu peso sobre os diferentes segmentos sociais. Ou seja, após a reforma tributária do Governo Lula, a economia continua sofrendo com o peso dos impostos, e as classes mais pobres é que continuam sustentando a máquina pública.

Tudo isso sem falar das reformas que nem se quer saíram do papel, como a política e a trabalhista.

Mas um governo que deseja mudanças não deve somente mudar sua própria estrutura. Deve também reestruturar a sociedade que governa com suas ações. Se quer transformar, suas ações devem ser transformadoras, e para isso o governo possui uma infinidade de opções para aplicar seus recursos e, assim, almejar as transformações que deseja. É o que o PT chamava de inversão de prioridades. Mas até nisso o Governo Lula está falhando.

Existem duas áreas fundamentais para o desenvolvimento social que nunca tiveram muita importância no Brasil: educação e saúde. Esses pontos são considerados valores universais de desenvolvimento, compondo dois dos três itens do IDH, indicador utilizado pelas Nações Unidas para medir o desenvolvimento humano de uma comunidade. No Brasil, esses quesitos sempre ficaram em segundo plano. Outros indicadores, muito menos objetivos, sempre foram mais utilizados para medir um pseudo-desenvolvimento, que não parece trazer muitas melhorias sociais aos brasileiros. Isso explica porque, mesmo sendo o segundo país que mais cresceu economicamente no período pós-guerra (perdendo somente para o Japão), o Brasil não conseguiu solucionar seus problemas mais básicos. Tornamo-nos, então, esse país de contrastes: rico e pobre ao mesmo tempo.

O Governo Lula, no entanto, perdeu a oportunidade de tratar com esses pontos tão fundamentais, ao contrário do que vinha caracterizando as demais experiências petistas pelo país.

É impossível falar em crescimento econômico sustentável sem falar em educação. Como já mencionei outras vezes, dizer que um país como o nosso, onde o trabalhador médio tem apenas seis anos de escolaridade, não cresce porque as taxas de juros são altas é uma simplificação do problema que beira à ingenuidade. Mas isso nem tem entrado no debate midiático atual. Ninguém toca nesse assunto. Enquanto isso, quase metade do orçamento público destinado à educação continua sendo remetido às universidades, às quais somente tem acesso a classe rica do país. É dinheiro público destinado à classe alta, enquanto o pobre permanece sem escola básica e, conseqüentemente, sem universidade. Parece absurdo que ninguém ainda tenha percebido que o problema do país não é a universidade. Não precisamos de escolas de engenharia, medicina, direito... Precisamos de boas escolas de matemática básica a fim de que possamos, então, ter bons engenheiros; de escolas que ensinem bem o português, para que as pessoas finalmente aprendam a ler e, assim, poderem ler os livros que necessitam na universidade. Não precisamos de ensino profissionalizante. Precisamos de ensino de filosofia, de literatura, de arte, de história... No Brasil, esse debate é tão pouco levado a sério que a “solução” encontrada pelo Governo foi pôr pessoas dentro das universidades privadas a qualquer custo, numa atitude visivelmente populista e sem compreensão da realidade em que nos encontramos. Enquanto o Brasil mantém a incrível taxa de 60% de analfabetos funcionais, a escola pública básica continua atirada às traças, com um monte de pobres dentro, os deixando inercialmente na ignorância e condenando nosso país a gerações de estagnação econômica e social.

O raciocínio segue o mesmo com a questão da saúde. Temos o melhor sistema de tratamento da AIDS do mundo, o que nos orgulha muito. Mas em nada isso nos serve se continuarmos, por exemplo, tendo epidemias de dengue como vem ocorrendo nos últimos anos. E não se trata de epidemias de dengue no meio da Amazônia, mas sim em metrópoles importantes como o Rio de Janeiro. Novamente, o problema do Brasil não é a medicina de ponta, de alta tecnologia, mas sim a básica, a simples. Foi chocante ouvir do médico Dráuzio Varella, durante o programa Roda Viva, já há um tempo, que o índice de mortalidade infantil poderia ser reduzido em cerca de 70% em algumas partes do país se os pais das crianças simplesmente lavassem as mãos com mais freqüência. O nosso problema ainda é a cólera, a gripe nos idosos, a diarréia nas crianças, a febre alta nos bebês, a gravidez na adolescência, o saneamento básico...

Temos, portanto, que fazer com que o Brasil atrasado alcance o moderno. E isso tem que ser feito rápido. Estamos de tal forma negligentes com essas questões básicas que alguns problemas brasileiros já estão parecendo não ter solução. Já nos parece impossível, por exemplo, resolver a questão das favelas. A questão da violência, por sua vez, que existe no país desde a década de 70, mas que somente a partir da de 90 passou a atingir o rico e, portanto, a ter importância, não tem projeto de solução sério que estime menos 20 anos para que se atinjam resultados pertinentes.

E nada disso tem sido tratado pelo Governo Lula.

Há ainda questões que não necessitam de verbas, nem de projetos nacionais, e que não foram sequer abordadas pelo atual governo, como o casamento gay. Qualquer país que vise se tornar vanguarda de pensamento, de respeito ao indivíduo e suas liberdades, de direitos humanos, deve tratar a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo com extrema seriedade. Além disso, no Brasil isso serviria como ferramenta para desestabilizar o enorme conservadorismo ainda tão presente na nossa sociedade e que contribui, e muito, para nos manter aquém das demais nações no mundo. Mas, mesmo o movimento homossexual estando sempre com o PT em todas as suas lutas, suas causas nunca foram debatidas pelo Governo Lula, e nunca participaram seriamente do debate público como proposta de governo.

Lamento profundamente que as conversas acerca do Governo Lula estejam somente em torno do “sobe o juro, desce o juro”. O ato de governar é mais amplo do que isso, e debates como os que aqui procurei levantar me parecem muito mais importantes que o que vem sendo feito atualmente. E, embora se diga, com razão, que as questões negligenciadas pelo Governo Lula também o foram pelos demais governos, não era isso que se esperava de um partido como o PT, com as idéias e projetos que tinha. Torço, portanto, para que a ampliação do debate acerca do atual governo, e do próximo, ocorra, e que a questão do desenvolvimento não continue sendo tratada com apenas um ou dois indicadores estatísticos.