Sou um dos raros (ex-)petistas que acha que uma das poucas coisas que presta no Governo Lula é a política macroeconômica. O atual governo tem buscado controle rigoroso da inflação mesmo ao custo de sua popularidade, tratando a questão dos juros como conseqüência de uma série de distúrbios da nossa economia, e não como causa, como tantos simplistas apontam. Além disso, prosseguiu com um objetivo que tem se buscado desde a crise de 1999, e que representa uma verdadeira revolução no Brasil: equilíbrio fiscal. Ter um governo que visa não gastar mais do que arrecada é o maior choque cultural que nossa sociedade vem sofrendo nos últimos anos – apesar do superávit ser ainda apenas primário, e não nominal. Afinal, estabilidade de preços e equilíbrio fiscal das contas do Estado são coisas de país sério. Nem parece Brasil...
As causas que me fizeram sair oficialmente do PT ano passado, portanto, são outras. O estopim para minha decisão, porém, não poderia ser outra: os casos de corrupção envolvendo o Governo, claro. E isso porque nós, você e eu, petistas, temos a péssima mania de responder pelo que nossas administrações fazem. Aquele negócio de “vestir a camiseta”. Obviamente, ninguém quer ter que responder às denúncias contra o Governo, ainda mais no estado de choque onde ainda nos encontramos. Então, enquanto os que votam em outros candidatos sentem-se livres de responsabilidades pelo que seus candidatos fazem, nós, você e eu, petistas, nos sentimos intimamente ligados e responsáveis pela forma como nossas administrações atuam (entendeu? “nossas...”). A fuga disso, quando ocorre o que vem ocorrendo, acaba sendo, inevitavelmente, a saída do partido. São conseqüências de se pôr a cara ao tapa, de estar no, até então, único partido do país que era verdadeiramente... partido.
Mas minhas críticas ao Governo Lula não se limitam a esse fato. E isso se explica porque, assim como a maioria dos brasileiros, também votei no Lula ansioso por mudanças, e estas não vieram. Não trato aqui de mudanças na política econômica, mas sim de mudanças nas políticas públicas, na utilização do Estado como ferramenta de transformação social. A ansiedade que tinha se mantém não somente devido a ações desastradas do Governo, mas também à sua ausência numa série de questões fundamentais aos que desejam transformar o país e o colocar num caminho de desenvolvimento.
Podemos iniciar a exemplificação dessas ausências com pontos específicos. Das ações que buscam realmente transformar o país, a reforma da previdência foi a que mais se aproximou desse objetivo, mas nem perto solucionou o problema que tende a se tornar cada vez maior com o passar dos anos. Embora tenha tocado em questões pertinentes, consistiu, de fato, numa redução dos salários dos pensionistas que já recebem o benefício, nada mais. Podemos esperar sentados, pois outra reforma será necessária nos próximos anos, e a dor vai ser maior.
Mas decepcionante mesmo foi a reforma tributária. A forma de arrecadação de impostos é uma das ferramentas essenciais ao desenvolvimento, podendo permitir ou não competitividade a setores da economia, além de qualificar e quantificar a arrecadação dependendo dos setores sobre os quais esses impostos mais recaem. Ademais, a tributação é um mecanismo poderoso de distribuição de renda, o que auxiliaria na resolução de um dos maiores, se não o maior, problema da nossa sociedade. Pois a reforma tributária do Governo Lula apenas alterou algumas alíquotas, não mexendo na estrutura da carga, tão pouco no seu peso sobre os diferentes segmentos sociais. Ou seja, após a reforma tributária do Governo Lula, a economia continua sofrendo com o peso dos impostos, e as classes mais pobres é que continuam sustentando a máquina pública.
Tudo isso sem falar das reformas que nem se quer saíram do papel, como a política e a trabalhista.
Mas um governo que deseja mudanças não deve somente mudar sua própria estrutura. Deve também reestruturar a sociedade que governa com suas ações. Se quer transformar, suas ações devem ser transformadoras, e para isso o governo possui uma infinidade de opções para aplicar seus recursos e, assim, almejar as transformações que deseja. É o que o PT chamava de inversão de prioridades. Mas até nisso o Governo Lula está falhando.
Existem duas áreas fundamentais para o desenvolvimento social que nunca tiveram muita importância no Brasil: educação e saúde. Esses pontos são considerados valores universais de desenvolvimento, compondo dois dos três itens do IDH, indicador utilizado pelas Nações Unidas para medir o desenvolvimento humano de uma comunidade. No Brasil, esses quesitos sempre ficaram em segundo plano. Outros indicadores, muito menos objetivos, sempre foram mais utilizados para medir um pseudo-desenvolvimento, que não parece trazer muitas melhorias sociais aos brasileiros. Isso explica porque, mesmo sendo o segundo país que mais cresceu economicamente no período pós-guerra (perdendo somente para o Japão), o Brasil não conseguiu solucionar seus problemas mais básicos. Tornamo-nos, então, esse país de contrastes: rico e pobre ao mesmo tempo.
O Governo Lula, no entanto, perdeu a oportunidade de tratar com esses pontos tão fundamentais, ao contrário do que vinha caracterizando as demais experiências petistas pelo país.
É impossível falar em crescimento econômico sustentável sem falar em educação. Como já mencionei outras vezes, dizer que um país como o nosso, onde o trabalhador médio tem apenas seis anos de escolaridade, não cresce porque as taxas de juros são altas é uma simplificação do problema que beira à ingenuidade. Mas isso nem tem entrado no debate midiático atual. Ninguém toca nesse assunto. Enquanto isso, quase metade do orçamento público destinado à educação continua sendo remetido às universidades, às quais somente tem acesso a classe rica do país. É dinheiro público destinado à classe alta, enquanto o pobre permanece sem escola básica e, conseqüentemente, sem universidade. Parece absurdo que ninguém ainda tenha percebido que o problema do país não é a universidade. Não precisamos de escolas de engenharia, medicina, direito... Precisamos de boas escolas de matemática básica a fim de que possamos, então, ter bons engenheiros; de escolas que ensinem bem o português, para que as pessoas finalmente aprendam a ler e, assim, poderem ler os livros que necessitam na universidade. Não precisamos de ensino profissionalizante. Precisamos de ensino de filosofia, de literatura, de arte, de história... No Brasil, esse debate é tão pouco levado a sério que a “solução” encontrada pelo Governo foi pôr pessoas dentro das universidades privadas a qualquer custo, numa atitude visivelmente populista e sem compreensão da realidade em que nos encontramos. Enquanto o Brasil mantém a incrível taxa de 60% de analfabetos funcionais, a escola pública básica continua atirada às traças, com um monte de pobres dentro, os deixando inercialmente na ignorância e condenando nosso país a gerações de estagnação econômica e social.
O raciocínio segue o mesmo com a questão da saúde. Temos o melhor sistema de tratamento da AIDS do mundo, o que nos orgulha muito. Mas em nada isso nos serve se continuarmos, por exemplo, tendo epidemias de dengue como vem ocorrendo nos últimos anos. E não se trata de epidemias de dengue no meio da Amazônia, mas sim em metrópoles importantes como o Rio de Janeiro. Novamente, o problema do Brasil não é a medicina de ponta, de alta tecnologia, mas sim a básica, a simples. Foi chocante ouvir do médico Dráuzio Varella, durante o programa Roda Viva, já há um tempo, que o índice de mortalidade infantil poderia ser reduzido em cerca de 70% em algumas partes do país se os pais das crianças simplesmente lavassem as mãos com mais freqüência. O nosso problema ainda é a cólera, a gripe nos idosos, a diarréia nas crianças, a febre alta nos bebês, a gravidez na adolescência, o saneamento básico...
Temos, portanto, que fazer com que o Brasil atrasado alcance o moderno. E isso tem que ser feito rápido. Estamos de tal forma negligentes com essas questões básicas que alguns problemas brasileiros já estão parecendo não ter solução. Já nos parece impossível, por exemplo, resolver a questão das favelas. A questão da violência, por sua vez, que existe no país desde a década de 70, mas que somente a partir da de 90 passou a atingir o rico e, portanto, a ter importância, não tem projeto de solução sério que estime menos 20 anos para que se atinjam resultados pertinentes.
E nada disso tem sido tratado pelo Governo Lula.
Há ainda questões que não necessitam de verbas, nem de projetos nacionais, e que não foram sequer abordadas pelo atual governo, como o casamento gay. Qualquer país que vise se tornar vanguarda de pensamento, de respeito ao indivíduo e suas liberdades, de direitos humanos, deve tratar a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo com extrema seriedade. Além disso, no Brasil isso serviria como ferramenta para desestabilizar o enorme conservadorismo ainda tão presente na nossa sociedade e que contribui, e muito, para nos manter aquém das demais nações no mundo. Mas, mesmo o movimento homossexual estando sempre com o PT em todas as suas lutas, suas causas nunca foram debatidas pelo Governo Lula, e nunca participaram seriamente do debate público como proposta de governo.
Lamento profundamente que as conversas acerca do Governo Lula estejam somente em torno do “sobe o juro, desce o juro”. O ato de governar é mais amplo do que isso, e debates como os que aqui procurei levantar me parecem muito mais importantes que o que vem sendo feito atualmente. E, embora se diga, com razão, que as questões negligenciadas pelo Governo Lula também o foram pelos demais governos, não era isso que se esperava de um partido como o PT, com as idéias e projetos que tinha. Torço, portanto, para que a ampliação do debate acerca do atual governo, e do próximo, ocorra, e que a questão do desenvolvimento não continue sendo tratada com apenas um ou dois indicadores estatísticos.