quinta-feira, agosto 03, 2006

Cara do Brasil

A surpresa é a causa dos textos que aqui se encontram.

Há algumas semanas, o Congresso Nacional foi invadido violentamente por mais de 500 manifestantes de um tal Movimento de Libertação dos Sem-Terras (MLST), o que resultou na destruição de parte da luxuosa decoração do Parlamento e no ferimento de pelo menos 26 pessoas, dentre as quais uma em estado grave que, por sorte, já se recuperou. Foi de deixar a torcida do Grêmio com inveja: o primeiro alvo dos baderneiros – compostos também por mulheres, crianças e idosos – foi um carro zero quilômetro que seria sorteado na festa junina dos servidores. Tadinhos, ficaram sem festinha de São João... Tudo isso, sim, muito triste e lamentável.

Mas se enganam os que pensam que a surpresa desses rabiscos é a invasão do Congresso, em si. Não é. Aliás, pelos menos aqui, não pretendo fazer nenhuma análise rigorosa desse ato praticado pelo MLST – ideologias envolvidas, razões, histórico dos fatos, números etc. Isso, aqui, não tem importância. Basta olhar pela janela da nossa confortável e aconchegante casa para perceber o quão surpreendente é o fato do prédio do Congresso ainda estar de pé.

Mas deixemos a janela de casa um pouco de lado e vejamos através de outro meio de comunicação muito mais fácil de ser compreendido, cuja instrução pré-requisitada é muito inferior que a pela realidade: a televisão. Através dela, acompanhamos nos últimos meses não a um, mas a vários, mudando somente de intensidade, casos de corrupção envolvendo (quem diria?) exatamente o Congresso Nacional. Vimos o surgimento do mensalão através dos contagiantes depoimentos do deputado Roberto Jéfferson, hoje ídolo do PTB, acusando seus excelentíssimos colegas de receberem dinheiro do Executivo, oriundo de empresas estatais, a fim de aprovarem os projetos do Governo. Vimos, então, a eleição de um personagem de história em quadrinhos, Severino Cavalcanti, para presidente do circo, através de um jogo de politicagem que deve ser evitado em horários de refeição. Pior que isso, só sua saída do cargo, provocada por razões que me deixam sem lado para torcer... Nesse meio tempo houve de tudo um pouco: dólar na cueca, dezenas de ações da Polícia Federal e aí vai. Fatos não necessariamente interligados, mas representando um mesmo mal. Já estávamos quase esquecendo de tudo, cansados das notícias, quando mais um fato nos trouxe à memória a situação em que nos encontramos: os tais sanguessugas. Se antes a coisa já estava ruim, nessa os excelentíssimos se superaram: um em cada seis deputados envolvido no superfaturamento da compra de ambulâncias. Em suma, roubalheira geral, tudo questão de milhões e milhões de reais. Foi-se o tempo em que os educados diziam ser a maioria dos parlamentares honesta, sendo um pequeno grupo responsável por esses fatos lamentáveis. Viu-se ser exatamente o contrário. E basta olhar as pesquisas acerca da credibilidade do Congresso para ver que isso não é só uma impressão minha. Aliás, que saudade do tempo em que era só impressão...

Na comparação desses casos com o da invasão do prédio do Congresso por manifestantes do MLST, não vou tratar da, digamos, gravidade deles. Vou supor que todos que estejam lendo esse texto tenham capacidade suficiente de perceber essas nuances. Tratarei somente das conseqüências. No caso da invasão, todos os manifestantes foram imediatamente presos. Sim, eu disse todos, os mais de 500, inclusive as crianças, que foram levadas a instituições especializadas. Aos poucos, foram sendo liberados, instaurando-se, no entanto, processos judiciais contra 115 deles, sendo que 41 permanecem na cadeia. Pergunto: quantos dos deputados envolvidos nos casos de corrupção que, como disse, envolveram milhões de reais, foram presos? Nenhum! Nem unzinho! Estão todos soltos, e a minoria deles voltará ano que vem, após as eleições. Eu disse minoria porque a maioria não vai precisar voltar, pois nem teve que sair. Não foi sequer cassada, tampouco teve que renunciar aos seus cargos. Uma impunidade revoltante que contrasta com o rigor da lei aplicado sobre os baderneiros do Congresso.

É... Mas a surpresa de que falei na primeira frase vem agora, ou melhor, veio quando percebi que o contraste do rigor da lei era exclusivo aos meus olhos. O conservadorismo brasileiro se manifestou como poucas vezes nas inúmeras vozes que se levantaram contra os integrantes do MLST. De todos os lados, inclusive de amigos meus, ditos de esquerda. Acharam um absurdo a invasão do prédio do Congresso, um ataque a uma instituição democrática e, logo, à democracia, ao estado de direito. Clamaram por opressão contra esses movimentos de sem-terras, que ficam invadindo terras por aí, atacando a propriedade privada e a liberdade individual. Estranho... Por que não chamam de “ataque a uma instituição democrática” toda a corrupção que envolveu o Parlamento nesses últimos meses? Será que não se trata de um abalo à democracia muito maior que a quebra da estátua do Mário Covas da entrada do Congresso? Não será um ataque ao estado de direito toda a impunidade com que os casos de corrupção dos congressistas foram tratados? Por que meus amigos não clamam em seus blogs, os jornais em seus editoriais, as revistas, as pessoas, por opressão contra os deputados corruptos e por um rigor legal sobre eles tão grande quanto o sobre os manifestantes do MLST? Por que, afinal, soou tão absurdamente a invasão por populares, mesmo que parcial, de uma instituição pública já comprovadamente sem legitimidade da sociedade?

Costumo dizer que, quando houver planos de uma nova invasão do Congresso, me chamem que vou junto. Não, não estou defendendo a impunidade. Pelo contrário, o que estou defendendo é a aplicação da mesma lei para todos. Isso é que define uma democracia, e não a invasão ou não do Congresso Nacional. E, sim, estou criticando a nós, mesmos, brasileiros, e à nossa visão tosca acerca da nossa própria realidade, ao nosso conservadorismo, ao nosso amor às desigualdades - de todos nós, até mesmo dos meus amigos de esquerda.

O contraste entre as conseqüências da corrupção dos deputados e as do vandalismo do MLST, e o pior, com o nosso apoio subentendido, retrata uma coisa que aprendemos desde criança, que qualquer cachaceiro num boteco ou uma dona de casa sabe, e que os intelectualóides nacionais insistem em não admitir, que, no Brasil, somente pobres, pretos e putas vão para a cadeia. Aprendo mais sobre a realidade brasileira em ditos populares que na universidade.

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