sábado, fevereiro 24, 2007

Confissões

Eu gostaria de ter mais confiança nas pessoas. Gostaria de conhecer alguém com quem pudesse conversar sem ter medo do que tenho a dizer, sem ter medo das conseqüências. No fundo, sou um grande careta, um merdinha. Tenho medo das minhas ações, dos resultados delas no futuro, como se eu ou meu futuro fossem coisas muito importantes. Uma fraude, isso é o que sou.

Sobra, então, a angústia, a ansiedade, aquela sensação de que falta algo que não sei o que é, e que, mesmo que soubesse, não poderia obtê-lo. Agarro-me à disciplina – na esperança de ser recompensado um dia – e à falsa compreensão de que a vida é assim mesma. Conformo-me, me adapto, passo a ser tolerante. E com a tolerância, vão-se os sonhos, pois agora tenho que ser adulto e não posso mais perder meu tempo com devaneios.

Até hoje, não sei o que quero da vida. Até hoje, não consigo permanecer sentado numa cadeira até terminar de ler um livro. Estou no terceiro parágrafo desse pequeno texto e já caminhei pela casa duas vezes, e certamente o encerrarei sem dizer tudo que desejo. Sou um transtornado, eu acho. Aonde isso me levará?

Quanto mais cresço, quanto mais envelheço, menos confiança tenho em mim mesmo. As possibilidades há uns anos pareciam tantas, e agora são tão poucas. Isso é maturidade? Ou o que eu sentia antes é que eram ilusões infantis?

Como tenho inveja dos ingênuos! Quanta coisa atormenta minha cabeça que ainda não consigo transformar em palavras. E quanta que jamais se transformará...

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Algumas lições de Kafka

Se da mente do escritor tcheco Franz Kafka (1883 –1924) tivesse surgido, além de personagens, um país, este seria o Brasil. Kafka, considerado, ao lado de Proust, um dos maiores escritores do século XX, é dito o autor do absurdo. Ora, o Brasil é o país do absurdo.

Terminei de ler no fim de semana passado uma de suas obras mais conhecidas chamada O Processo. Você, leitor, já a deve conhecer: nela, Kafka relata a história de homem de cerca de 30 anos que, num dia, vê sua vida rotineira de funcionário de um banco ser conturbada por um processo judicial que sofre, sem saber a razão. Isso é característico de Kafka: pessoas normais, vidas normais, que, de repente, são transformadas radicalmente por um acontecimento, pois, absurdo.

Nem a mente de Kafka, no entanto, seria capaz de criar algo como o Brasil. Em suas obras, o absurdo é entendido como tal, pelo menos. No Brasil, o absurdo é a regra, a ponto de deixar de ser absurdo. Assim, no Brasil, nada mais é absurdo.

Gostaria de saber se O Processo é lido nas faculdades de Direito do nosso país. Na minha opinião, Kafka poderia ser ministro do STF e ganhar seus cerca R$ 25 mil, pois li poucos relatos tão bons acerca do Judiciário brasileiro quanto o dele, nessa sua obra. Kafka, aliás, era formado em Direito, e certamente utilizou sua formação na realização de seu trabalho como escritor, talvez mais particularmente n’O Processo, embora se saiba que sua intenção era muito mais literária que acadêmica. Ou seja, o Judiciário brasileiro parece vir de uma obra de ficção.

Isso se explica.

Primeiro, Kafka sinaliza à ausência de razões do processo que sofre o personagem de seu livro. Em nenhum momento da obra, o personagem, ou o leitor, conhece a causa do processo que se tramita, fazendo com que ambos deixem de dar importância a isso a partir de um determinado ponto da história. As causas do processo, logo, deixam de ser pertinentes, passando a ter este um fim em si mesmo. Isso se enfatiza quando o personagem percebe a ausência da perspectiva de um final ao seu processo, quando sua essência passa a ser unicamente seu desenrolar, e não mais um julgamento ou um veredicto.

Depois, e de forma bem mais clara, é relatado a forma como os funcionários da Justiça agem e as relações entre eles. A maioria dos casos, fica sabendo o personagem, são resolvidos pelos contatos que os advogados responsáveis têm com os juizes, mais do que pela forma da verdade e da lei. A mesma descrição com sensibilidade se observa na relação entre os advogados e seus clientes, que tem seu auge na cena presenciada pelo personagem quando seu advogado atende ao comerciante, outro de seus clientes. Ali, o comerciante é humilhado de forma consentida, se apresentando o advogado como um ser superior a quem o primeiro deve agradecer pela bondade e prestação.

Há quem possa dizer que O Processo somente tangencia a realidade. Respondo que não, pois Kafka descreve os acontecimentos com tal sutileza que faz com que a fronteira com o absurdo seja ultrapassada discretamente, nos deixando perceber isso somente quando já estamos envolvidos nele. No Brasil, ocorre algo parecido. A diferença é que não podemos fechar a realidade, como se fecha um livro, para refletir. Os personagens do livro também não faziam isso, obviamente, pois, para eles, o livro era a realidade, nos fazendo entrar agora numa questão de metafísica.

Mas as semelhanças entre a vida e a arte podem ser mais específicas. Por exemplo, a transformação do processo num fim em si mesmo pode ser uma forma irônica, embora não engraçada, de expressar acerca da utilidade da Justiça. Os entendidos da lei são os legisladores que, caso tornem a lei entendível, ou prática, perdem sua utilidade. É o cachorro correndo atrás do rabo. O veredicto, portanto, é um fim indesejável com gosto de nostalgia.

A descrição do relacionamento dos membros da Justiça, porém, foi a maior contribuição de Kafka com essa obra a nós, conservadores subnutridos. O que n’O Processo não há denominação, embora o fato seja mais claro lá que aqui, do lado de fora, é o nosso tão conhecido corporativismo do Judiciário. Lutam, juntos, por salários e obras, defendem os seus e condenam os nossos. Nós, coitados, fazemos todos o papel do comerciante - poderia dizer do personagem principal, mas este ainda achava estranho tudo aquilo. Ou seja, para personagem principal definitivamente não servimos.

Você, leitor, então pode se perguntar o que significa o final do livro, quando o personagem sofre a execução de sua pena procurando manter sua vergonha, sua moral. Aquele personagem, leitor, representa todos nós, que olhamos o mundo de forma arrogante como se dele não fizéssemos parte, crendo ingenuamente na sua inquestionabilidade, apunhalados e mortos pela ordem.

Leia Kafka.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Pequena Crônica da Contemporaneidade

Já faz um tempo, li uma coluna do Elio Gaspari, dessas que saem nas edições de domingo do Correio do Povo, daquelas bem ao seu estilo, de vocabulário irônico e cruel. Falava, e bem, do Governo Lula, ao tratar dos benefícios trazidos às classes pobres pelas medidas de desoneração fiscal sobre os materiais de construção. Descrevia a forma pela qual as classes baixas erguem seus “puxadinhos”, geralmente com a ajuda de amigos e parentes, e o quão importante isso era para essas pessoas e o impacto disso sobre suas vidas. Descrevia também o desconforto dos ricos do país com essa alegria da ralé, comparando com o que aconteceu no século XIX imediatamente após o fim da escravidão, quando os negros libertos passaram a freqüentar as ruas, desempregados e bêbados, como todos os cidadãos de bem. Percebi naquele momento o meu espírito de burguês enrustido, que se escancarou na minha frente num choque de verdade.

Nessa manhã, rumei para a faculdade vindo de Sapucaia do Sul, na grande Porto Alegre. Passar um tempo lá, por menor que seja, é sempre uma experiência interessante: as pessoas nas ruas, os caras tentando impressionar as gurias que os seduzem com seus bonitos decotes e saias curtas, além dos muitos botecos, e dos tradicionais churrascos e cervejadas em todas as casas, nos fins de semana.

A viagem até lá se faz de trem ou de ônibus, este que passa pela rodovia federal que cruza várias cidades da região. Nas minhas idas, geralmente poucas pessoas no coletivo, a maioria senhoras, todas de saias longas e lendo bíblias. Nas voltas, não costumo prestar muita atenção, e as costumo fazer de trem. Hoje, no entanto, foi diferente: acordei às 5h30min, ainda noite, para vir cedo, sob uma chuva torrencial que chegava a assustar. Vim de ônibus dessa vez, que estava cheio de homens e mulheres que se dirigiam visivelmente para seus empregos. Todos tão trabalhadores que cheguei a ficar com vergonha de mim mesmo. Em cada parada diante de uma firma, desciam muitos, que se despediam carinhosamente dos que prosseguiriam a viagem (particularmente do motorista), numa espécie de cumplicidade fraternal. Ali, eu vi o Brasil.

Um amigo meu que viajou para São Paulo se disse muito chocado com o contraste da pobreza que por lá encontrou. Lá, o país dá a cara ao tapa, e não finge ser o que não é. É um Brasil com menos vaidades. No meio de seu relato, soltou a seguinte expressão, simples e profunda ao mesmo tempo, como são os contrastes que nos caracterizam: “É muita pobreza, cara... Puta merda, esse país precisa crescer...”.