segunda-feira, dezembro 26, 2005

O Pensamento de Hayek à Realidade Brasileira*

Esse ensaio faz uma análise de aspectos da realidade brasileira sob a ótica exposta na obra O Caminho da Servidão, de Friedrich A. Hayek.

Antes que se trate do tema a que esse trabalho se propõe, é importante que se faça uma ponderação ao mesmo estilo de Hayek no prefácio de sua obra: esse é um trabalho político. Como recomendou Hayek, é importante que se deixe isso claro desde o começo. Esse ensaio terá, portanto, um viés ideológico forte, conforme aquilo a que indica a proposta sugerida. E como todo o trabalho político, e com a inclinação ideológica inevitável que tem, fatalmente estaremos abordando apenas um dos lados das questões, uma visão dos fatos, o que nos dará uma idéia parcial daquilo tudo que será apresentado.

Apesar da consciência disso, é feita também uma busca utópica em prol da imparcialidade, de uma abordagem moderada acerca das questões. Para isso, evitou-se o tratamento de aspectos puramente políticos, ou de ideologias aplicadas sem ponderações à realidade. Os próprios exemplos apresentados por Hayek em sua obra são extremos, reflexos de uma época conturbada da História da Humanidade, de quando não se encontram semelhanças tão fortes, ou evidentes, na atualidade.

O ensaio que se segue será focado em pontos da realidade brasileira cujos problemas têm causas consensuais em praticamente todas as suas interpretações. A isso se juntam outros aspectos de abrangência mais ampla, como a formação da nossa democracia.

No mais, o tratamento prático da realidade brasileira mostrará a capacidade das teorias de Hayek em lidar com os problemas de que esse ensaio se propõe a tratar.

A necessária regulação da liberdade
Um dos primeiros aspectos tratados por Hayek em sua obra, e que caracteriza qualquer pensamento liberal, trata da necessidade de uma regulação mínima que zele pelas liberdades e por um Estado de direito. A abordagem a ser feita sobre essa questão, mais do que sobre a expressão “regulação mínima”, tem como objetivo o debate acerca do fato de que essa “regulação mínima” deve zelar pelas liberdades individuais.

Geralmente, quando abordada, essa questão é tratada sob um ponto de vista filosófico que, embora tenha importância, acaba caindo em questões subjetivas de pouca análise prática. A abordagem puramente filosófica trata da interferência do Estado sobre a vida dos indivíduos e, ao caso brasileiro, costuma se fixar em questões pontuais, como a alta carga tributária, aos inúmeros serviços públicos utilizados por uma minoria e pagos por todos etc. Trata do chamado “socialismo moderado” em que vivemos. A questão prática do assunto, no entanto, e ao qual daremos ênfase, tratará da forma como essa intervenção estatal corrói o funcionamento do mercado, não devido somente à sua intervenção propriamente dita, mas principalmente à forma como essa intervenção acontece.

O Brasil é carente de liberdade de mercado. Mas mais do que carente dessa liberdade, é carente de boas e fortes instituições capazes de regular essa liberdade de forma que ela seja preservada e eficaz para atender às demandas sociais. A necessária regulação dos mercados é abordada desde Adam Smith e alicerça todo o pensamento liberal, sendo ainda mais enfatizada pelos chamados neo-institucionalistas como os economistas David Landes e Amartya Sen – embora estes não mais foquem a liberdade como ideologia - ampliando a idéia a questões culturais que também podem ser abordadas, desde que com algumas ressalvas. A questão institucional, portanto, passa a ser o foco central do debate brasileiro acerca das questões de liberdade sob uma ótica de praticidade, de política pública e de sociedade, muito mais do que a simples abordagem da liberdade como filosofia de vida ou como visão utópica de mundo.

O problema de regulação de mercados no Brasil vem desde muito, e historicamente tem prejudicado o nosso desenvolvimento. Esse debate envolve basicamente duas questões: o mau funcionamento das instituições e a sua instabilidade.

Inúmeras são as instituições brasileiras que atrofiam o funcionamento do livre mercado, como a nossa legislação ambiental imprecisa, nossa legislação trabalhista que nos tira competitividade e, de forma geral, todo o judiciário lento. A questão das más instituições pró-mercado não se restringe a esse Poder, e vai até outros aspectos de ordem às vezes inferior, como a burocracia e lentidão de serviços públicos básicos, desde aqueles ligados à abertura e fechamento de empresas, até os responsáveis pelos atendimentos de educação, saúde e segurança – que aumentam o custo do empreendimento ao capitalista.

E as regras de mercado representadas por essas instituições, além de incapazes de cumprir o papel de agilizar seu funcionamento, costumam ser pouco estáveis ao longo do tempo, tirando a confiança do investidor – não havendo a existência, portanto, do que Hayek chama de Regime da Lei. A desconfiança do capitalista em relação ao nosso país se reflete nas próprias políticas econômicas que temos que adotar, como altas taxas de juros, por exemplo. A confiança na manutenção de regras claras é fundamental para o bom funcionamento do mercado. A ênfase na importância de um estado mínimo eficiente em prol do mercado dada por Hayek, parece se traduzir no Brasil na constituição de um estado grande e que, mais que regular, busca controlar o mercado.

Exemplo disso tudo são as recentes agências reguladoras, que visam regular as estatais privatizadas e os serviços prestados por empresas portadoras de monopólios naturais. Essas agências têm se mostrado ineficientes no cumprimento de seu papel de regular em favor do mercado, tendo muitas vezes interesses incompatíveis em sua política de atuação com aquilo a que se prestam. Além disso, sua função sobre o mercado e suas definições ambíguas que as caracterizam no Brasil tiraram a confiança necessária aos investidores para que estes acreditem no retorno do capital empregado. Como conseqüência, temos nas empresas privatizadas e portadoras de monopólios naturais - em todas, mas mais particularmente as do setor elétrico - os maiores gargalos ao desenvolvimento econômico brasileiro para os próximos anos.

O mesmo ocorre para a construção política que aqui se fez. Hayek aponta para a importância de articular a democracia de forma que seus valores independam de quem esteja no poder. Evidência da fragilidade da nossa democracia ocorreu no processo de eleição e durante o primeiro ano de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando capitais fugiram do país com o temor de que o novo governo não cumprisse os contratos firmados no mercado. Em países de democracia forte, o “não cumprimento de contratos” é uma possibilidade inexistente, independente das mudanças de governo que ocorram. Isso garante estabilidade ao investidor e, assim, progresso econômico.

E cumprimento de contratos implica regras claras desde antes. Isso é impossível num país onde um governante pode mudar as regras sociais ou econômicas à hora que pretender através das chamadas Medidas Provisórias, ilimitadas e independentes da opinião do Parlamento. As Medidas Provisórias são uma forma de lei que diz que “tudo está na lei”, o que impede a aplicação do que Hayek chama de Regime da Lei. Trata-se, ainda seguindo a idéia de Hayek, de uma agressão à liberdade individual, onde se fica a mercê dos interesses de um indivíduo que, naquele momento, é soberano sobre as demais instituições democráticas. Isso inibe a confiança dos capitalistas na manutenção de regras claras para o mercado e na previsão do retorno do seu investimento, inibindo também, logo, o desenvolvimento econômico e conseqüentemente social.

Segurança Econômica e Liberdade
Segundo Hayek, ou se tem segurança econômica, e assim segurança na expectativa de retorno do investimento, ou se tem liberdade. Uma coisa implica na ausência da outra. Toda segurança econômica implica no sacrifício de uma classe social em prol de outra. Além disso, os não-segurados ficam relativamente mais inseguros com a segurança dos primeiros.

É muito comum no Brasil o requerimento de segurança para a atividade econômica. Parte do problema provém de questões culturais dos nossos investidores ou dos de fora que aqui chegam para investir. É como buscar obter vantagens sem querer assumir os riscos. Isso é resultado do paternalismo existente na sociedade brasileira, e sobre o qual falaremos mais adiante, onde sempre a participação do Estado é requerida a fim de conter incertezas ou inseguranças sociais ou dos mercados. Trata-se de segurança econômica em detrimento de toda a sociedade que terá de pagar pela desconfiança de poucos. Isso sem citar a injustiça cometida àqueles que não são segurados.

Um exemplo típico é o ocorrido a empresas multinacionais no caso de incentivos fiscais, principalmente no case das montadoras de automóveis. A maioria delas, ao ingressarem no Brasil, chantageia o Estado por segurança econômica – fazendo com que elas tenham os possíveis lucros, mas não assumam os riscos por eles. Um caso bastante debatido foi o ocorrido no Rio Grande do Sul no ano de 1998, quando uma grande montadora de automóveis transferiu seu projeto de investimento para outro Estado porque o primeiro se recusou a lhe conceder a série de incentivos e investimentos requeridos para a instalação da fábrica. Tratava-se da busca pela montadora por segurança econômica a ser paga por toda a sociedade gaúcha, em detrimento das finanças públicas estaduais, de outros serviços públicos vitais, e da sociedade diretamente, que, além de pagar pela segurança econômica da montadora através do Estado, estaria relativamente mais insegura quanto aos seus empreendimentos por não terem a mesma segurança.

Vale ressaltar também que a busca constante dos agentes por segurança econômica no Brasil em muito se deve à insegurança institucional aqui existente, como fora abordado no capítulo anterior. O fator chave no case da montadora no Rio Grande do Sul foi a carga tributária que a empresa pagaria e que, sendo menor no segundo Estado, a fez mudar seus planos de investimento. Embora se trate, sem dúvida, de uma chantagem por segurança econômica, tal fato não teria ocorrido caso a carga tributária gaúcha fosse compatível com o retorno previsto aos investimentos realizados. Da mesma forma, mas num contexto mais amplo, a alta taxa de juros requerida pelos investidores pelos papéis brasileiros se deve à falta de confiança existente no pagamento das nossas dívidas, característica construída ao longo da história econômica conturbada do nosso país. Certamente, se o Brasil fosse um país de instituições e mercado confiáveis, a busca por segurança econômica por parte dos agentes seria menor.

Portanto, cabe ao Estado zelar pela liberdade de mercado, afim de que os agentes se apropriem das vantagens de suas ações livres, mas desde que estes também assumam a responsabilidade sobre elas. O que parece ocorrer, no entanto, é que nem o zelo pelas liberdades por parte do Estado, nem a o ato de assumir as responsabilidades por parte dos agentes, tem sido observado na nossa sociedade, independente da relação causa-conseqüência.

O Federalismo de Hayek à sociedade brasileira
Uma das idéias trabalhadas com mais detalhamento por Hayek em sua obra trata do federalismo, um modelo de organização política onde uma autoridade superior teria poderes estritamente definidos enquanto a outros respeitos cada país teria total responsabilidade sobre seus atos. Hayek desenvolveu essa idéia para a construção de uma federação mundial que se cogitava na época – incluindo esse assunto no capítulo titulado As Perspectivas da Ordem Internacional. O objetivo daqui será tratar dessa idéia junto ao caso brasileiro, o que, ainda segundo as idéias Hayek, nos garantiria a democracia na relação entre os estados federados.

A federação em que se constitui o Brasil apresenta algumas deformidades desde a sua formação – gerando debates que hoje se resumem na questão da revisão do pacto federativo. Estamos, portanto, tratando de algumas dessas deformidades e de suas conseqüências sociais.

Um dos pontos abordados por Hayek acerca desse tema é o que afirma que, numa federação que ramifica a unidade em estados menores, o homem comum teria maior capacidade de compreender e fiscalizar o funcionamento da organização política que o cerca. Somente assim se garantiria a participação política de todos os indivíduos. De fato, no caso do Brasil, a pouca participação popular na política se oriunda de um problema remanescente desde o Regime Militar, quando, como apontado pelo cientista político argentino O’Donnell, o afastamento da população das questões políticas consistia numa política de governo. A sociedade brasileira – e de toda a América Latina, é verdade, ainda segundo O’Donnell – desconhece a situação e a formação da estrutura política de seu país. Por Hayek, uma das causas disso, e o que é apontado como a causa de muitos outros problemas, seria o grande poder centralizado que caracteriza o federalismo brasileiro. Com poderes mais concentrados nos Estados e municípios, o cidadão comum teria mais condições de compreender as ações do governo acerca da esfera sobre a qual tem ação. Isso aumentaria a participação e a consciência política da nossa sociedade.

Uma boa estrutura federativa deveria ser capaz de impedir a tirania de governos que a compõem, tanto dos federados quanto a do governo central. Para isso, não bastaria nos posicionarmos moralmente contra a tirania, mas nos caberia organizar a federação de forma que os diferentes estados sejam capazes de fiscalizar uns aos outros. Essa estrutura federativa, analisada ao caso brasileiro, pode ser adaptada ao problema persistente do combate à corrupção no país. Adaptando a idéia de Hayek a isso, temos a proposta de articularmos nossa federação de forma que os Estados e a União sejam capazes de fiscalizar a corrupção uns nos outros e, de alguma forma, inibir sua ocorrência. Por parte da União para com os Estados, esse conceito já tem certa funcionalidade e vem tendo avanços desde o início da década de 1990. A relação inversa, no entanto, ainda é precária, sendo a União fiscalizada por ela própria - o que compromete sua eficiência. A ação do Ministério Público se constitui numa alternativa para a fiscalização dos diferentes governos, mas não reflete a proposta de Hayek.

A má formação do federalismo brasileiro pode ter uma interpretação histórica: A centralização do poder em um governo central sempre nos foi importante para a unificação do nosso país desde o período colonial. As constantes revoltas provinciais, muitas pela sua independência do domínio português ou imperial, fizeram com que o governo central fosse pouco a pouco concentrando poder em suas mãos, impondo isso à cultura política nacional até os dias atuais. E hoje isso se reflete numa concentração tributária no Governo Federal, na constante atuação desse governo nos serviços públicos, como saúde e educação, além de sua função de principal investidor em infra-estrutura – devido, principalmente, à incapacidade disso por parte dos governos estaduais.

Crítica ao paternalismo da sociedade brasileira
Mais do que a simples atuação do Estado brasileiro sobre a economia e, logo, como explica Hayek, sobre todas as demais funções sociais, a sociedade brasileira é culturalmente paternalista. Temos enraizado na nossa formação a idéia de que o Estado deve ter participação em todos os campos de interação entre os indivíduos e que, assim, deve intervir em tudo aquilo que lhe seja possível ou necessário. Trata-se de uma noção de fragilidade enquanto sociedade que somos, e de incapacidade de enfrentarmos questões pertinentes somente a nós, e não ao Estado.

Exemplo disso é a questão acerca da qualidade da televisão brasileira. A má qualidade da televisão é debate em todo o mundo democrático - pois sua popularização gerou demanda inevitável por programação de baixa qualidade – mas somente no Brasil isso se tornou política de Estado. E isso devido a uma própria demanda da sociedade, um requerimento social para que o Estado intervisse na programação televisa pela melhoria de sua qualidade. Não nos é palpável a idéia de que a qualidade da televisão é uma questão de sociedade, de mobilização social pela causa, e não de Estado. O mesmo argumento se aplica a outros casos em que a ação estatal é requerida em substituição à ação da sociedade civil organizada.

E o paternalismo não existe somente na relação sociedade-estado, mas na relação entre as próprias camadas sociais. Temos uma elite que se acha superior ao povo e que, portanto, crê ser capaz de saber o que é bom para o povo melhor do que o próprio povo. E o mais curioso: temos um povo que também acha que deve haver uma elite superior a ele e que deve decidir por ele o que é bom para ele mesmo. É uma ação inconsciente por busca de proteção, por recusa dos indivíduos em assumirem a responsabilidade por seus próprios atos - base para a formação da cultura liberal necessária à construção de uma sociedade idem. A forte presença estatal, portanto, em diversos aspectos e particularmente na economia, é reflexo de uma vontade difundida entre nós de querermos o Estado protegendo os indivíduos.

Isso talvez também se deva ao passado. A formação histórica do nosso país fez com que os brasileiros vissem o Estado sempre como um inimigo do povo. Deveras, foi sempre isso que o Estado representou: o Estado português durante o Brasil colônia; o Estado “pseudo-português” durante o Brasil império; além de todos os períodos de ditadura vividos na época republicana. A idéia de Estado trabalhando ao lado da sociedade é algo muito recente, o que talvez tenha gerado uma carência social por ações do Estado em prol do povo nos dias atuais. A sociedade brasileira contemporânea, portanto, necessitaria ver o Estado atuando em seu benefício como uma forma de recompensa por séculos de total abandono estatal pelas suas causas, ainda não entendendo a fronteira tênue existente entre aquilo que de fato requer ação do Estado e aquilo que requer a ação da própria sociedade. Trata-se, talvez, da imaturidade de um país mal acostumado em assumir os rumos de seu próprio futuro.

Conclusão
O objetivo desse ensaio foi associar algumas idéias de Hayek presentes em sua obra estudada ao caso brasileiro, conforme a proposta feita.

O pensamento de Hayek se estruturou num período histórico diferente do vivido pelo Brasil atualmente, o que impede uma abordagem completa de seu raciocínio. Foi possível utilizar, no entanto, questões pertinentes a qualquer período, como a análise da estrutura federativa e a idéia de paternalismo. Aspectos mais técnicos abordados por Hayek, principalmente aos que tangem à Economia, também foram passíveis de utilização, devido às características da nossa formação econômica e à situação em que nos encontramos.

A mudança da nossa realidade para outra que consideramos melhor passa inevitavelmente por uma transformação do nosso pensamento, a fim de obtermos uma nova noção da participação do Estado sobre a sociedade. Da mesma forma, um aperfeiçoamento das nossas instituições parece fundamento para uma melhor atuação do livre mercado, nos possibilitando, daí, usufruir de seus benefícios.

Nos cabe, a partir de agora, pensarmos o Brasil a partir de uma perspectiva mais ampla, analisando características não vistas por Hayek, mas utilizando suas propostas de forma responsável como uma interpretação do passado a fim de construirmos o futuro. E a construção do futuro requer a revisão constante das idéias liberais em adaptação à nossa realidade, sem a qual perderemos muitas oportunidades de avanços sociais.

*Texto apresentado originalmente sob o título O Caminho da Servidão e a Realidade Brasileira: o Pensamento de Hayek na Análise de Casos Empíricos, como quesito de avaliação ao II Prêmio Donald Stewart Jr. – Instituto Liberal do Rio de Janeiro, em 2005.

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